Professor Salatiel, uma lenda.
Naldo Torres
Professor salathiel Torres em reunião para instalação da fundação Gorceix com Engº Lucas Lopes, Engº Amaro Lanari e Cel. Jovelino Rabelo. (Foto gentilmente cedida fela fundação Gorceix) |
Quando
o conheci, era ainda criança, mas já o tinha como uma lenda. Um acontecimento
para a família, ainda majoritariamente reunida na pequena Bambuí, a sua chegada,
acompanhado de toda família. Uma grande festa, devidamente registrada para a
posteridade pela infalível câmera do Totônio.
Morava
longe. Como era longe a Ouro Preto daqueles tempos! Grande, sério, austero; um
líder. Os mais jovens não compreendiam quanto era grandiosa aquela tenda que
abrigou irmãos e sobrinhos, - mais de uma dezena, mais de vinte? - que sombreou
os estudos, a educação de todos, em Mariana e em Ouro Preto.
Alguns
moraram uns tempos em sua casa. Somente pelo auxílio e pela influência daquele filho
de Antero duas alentadas gerações puderam se educar e se instruir mais do que
lhes permitiria a nossa matriz – Bambuí - e os parcos recursos do pai e dos
irmãos. Muitos irmãos mais novos e filhos de todos os irmãos mais velhos
passaram por aquela casa da Rua Direita, encaminhados pelo velho Salatiel para
os colégios de Mariana, Ouro Preto e até Cachoeira do Campo.
Sou
um desses anônimos Torres que por lá passaram, que ali lapidaram seus
conhecimentos, seu viver, seu caráter enfim, sempre sob o olhar atento, o
conselho meio escondido, os recados transmitidos sorrateiramente através da
alegria e verborragia da Candinha. Naquela época não víamos isso, mas hoje
sabemos que nosso caminho estava sempre iluminado por aquela figura, com seu
farol clareando caminhos; não só dos parentes, mas de todos os discípulos que
desfilaram diante do professor, do diretor, do político. O visionário que
implantou obras educativas, quase anonimamente, sem se vangloriar disso; e que
persistem até hoje.
Essa
a imagem do parente já maduro, captada pelo olhar do menino, jovem engenheirando,
que por Ouro Preto viveu durante anos; ela vem através de flashes que durante o
viver e conviver foram ficando registrados nos escaninhos na memória. Uns
claros e bem delineados, outros embaçados; outros ainda retocados pelas lendas,
que de tanto repetidas se tornam verdadeiras. Aí vão alguns.
Primeiro,
a imagem. Alto, branco ao contrario dos irmãos; como era branco aquele pescoço
raramente visto, sempre envolto pelo colarinho abotoado, a gravata escura com o
nó pronto e abotoada, não sei como, na camisa. Tudo coberto pelo paletó do
indefectível terno azul marinho, salpicado de caspas.
Domingo.
Finalmente domingo e até hoje sinto o cheiro e o gosto da magnífica macarronada
do ajantarado. Nos raros dias quentes ele poderia até estar só de camisa, mas
ao tomar lugar a mesa do almoço abotoava a gravata e vestia o paletó. Os sons
da música clássica na vitrola do Maurílio ecoavam pela casa. – Seria uma das
lendas? –
Final
de férias, chegada a Ouro Preto. Inquirição completa sobre os manos e parentes
de Bambuí. Ele sabia de tudo; talvez trocasse cartas com os irmãos. Telefone lá
havia, mas em Bambuí não.
Quantas
vezes o ouvi declamar, do poeta Guilherme de Almeida, um poema sobre o encanto
de morrer segundo a ótica do sábio, do monge e outros mais, arrematando os
versos com sua visão do encanto de viver. Podem consultar o poema. Ele o
repetia por completo. Como os irmãos, tinha fixação pela morte aos 64 anos.
A
mesa da sala coberta de papeis esparsos, trabalhos de alunos, anotações para
aulas e trabalhos. Não sei, mas sempre estavam lá.
O
caminho da Escola. Rigorosamente à mesma hora da manhã e da tarde subia a Rua
Direita em direção a Escola de Minas, empunhando aquela pasta preta ou com
livros nos braços. Passos longos e lentos, cabeça erguida. Lá ia ele,
inspirando respeito e admiração de alunos e conhecidos.
Carnaval.
Quarta feira de cinzas, início do vestibular. A alegria contagiante do
ambiente. Abandonamos os livros e lá fomos os companheiros de pensão para a Rua
São José. Eis que no meio da multidão surge aquela cabeça mais alta, conhecida.
Um colega diz: - “Olha lá seu tio”. Vi e respondi: - “Meu tio não é nada, o
pior é o gordo que vem manquitolando ao lado dele, meu pai.” Encontramos-nos.
Abraços, risadas e meu pai proclamou: – “Não lhe disse mano? É meu filho, não
seu. Hoje é noite de festa, não de estudo. Se tivéssemos cortado caminho pela
Rua do Paraná até o Pilar não o encontraríamos na pensão.”
Outra
vez o conselho do Salatiel. Não queria ver o sobrinho reprovado, decepcionado:
- “Se é só para experimentar deixe o concurso para frente, faça um ano de anexo”
- como se chamava o cursinho da Escola de Minas – “e deixe esse vestibular para
o próximo ano.” Teimei e fui experimentar. Depois da primeira prova escrita me
recebeu com um sorriso maroto e simplesmente disse: - “Que experimentar que
nada, você está bem preparado.” Essa frase me entusiasmou e enfrentei o resto
das provas com tranqüilidade. No dia da prova oral lá estava o diretor da
escola a fiscalizar o andamento dos exames. Quando chamaram meu nome eu o vi
sair sorrateiramente. Hoje vejo claro o motivo: evitar constrangimentos. Passei
bem classificado. Comemoramos juntos com um dos poucos abraços que trocamos.
Viagens
periódicas na rural da escola ao Rio de Janeiro. Sempre levando projetos e
mendigando verbas da Universidade do Brasil, da qual a escola fazia parte. Era
um martírio para a tia Candinha. Voltava sempre feliz, contando o tempo que
faltava para se aposentar e morar em Copacabana. Um sonho apenas.
Até
hoje me arrependo de o haver constrangido, seguindo uma diretiva do Diretório
Acadêmico, ao adentrar sua sala com a desculpa de ser sobrinho e lhe mostrar um
mal feito de professor contra o qual nossa turma estava em greve. Ele olhou aquilo,
disse que devia ser engano do professor, mas que iria investigar. Não se falou
mais sobre o assunto. No semestre seguinte a cadeira foi anulada para nossa turma
e repetida em horas extras as quinta feiras à noite, ministradas pelo Dr.
Alberto, irmão da tia Belinha.
O
convívio dos ex-alunos da Escola de Minas é intenso. Em muitas reuniões solenes
ou festivas, das quais participo inclusive nos almoço as quartas feiras, em
quase todas capitais do Brasil e em cidades mineradoras onde residem muitos
geólogos, sou recebido e conhecido como o sobrinho do Salatiel.
Meu
primeiro emprego. Tímido, me apresentei ao presidente da empresa solicitando
trabalho. Não fora aceito na Petrobras por não ter ainda certificado de
reservista. Ele me dispensou desse documento desde que não o abandonasse assim
que obtivesse o certificado e mandou-me voltar no dia seguinte; iria consultar
dois professores com quem eu iria trabalhar. No dia seguinte recebeu-me muito
bem; eu fora elogiado por ambos; e observou: - ”O que mais o qualifica é ser sobrinho
do Salatiel, o melhor e mais sério professor que já tive. Esta informação, que
não foi colocada no currículo, é a garantia de que você irá honrar o
compromisso.” Lá fiquei por mais de 40 anos tornei-me amigo e sócio do patrão
de quem me despedi a pouco tempo junto a uma cova.
Esse
o Salatiel que conheci.
Nenhum comentário:
Postar um comentário