terça-feira, 21 de maio de 2013


Professor Salatiel, uma lenda.
Naldo Torres
Professor salathiel Torres em reunião para instalação da fundação Gorceix
com Engº Lucas Lopes, Engº Amaro Lanari e Cel. Jovelino Rabelo.
(Foto gentilmente cedida fela fundação Gorceix)


Quando o conheci, era ainda criança, mas já o tinha como uma lenda. Um acontecimento para a família, ainda majoritariamente reunida na pequena Bambuí, a sua chegada, acompanhado de toda família. Uma grande festa, devidamente registrada para a posteridade pela infalível câmera do Totônio.

Morava longe. Como era longe a Ouro Preto daqueles tempos! Grande, sério, austero; um líder. Os mais jovens não compreendiam quanto era grandiosa aquela tenda que abrigou irmãos e sobrinhos, - mais de uma dezena, mais de vinte? - que sombreou os estudos, a educação de todos, em Mariana e em Ouro Preto.

Alguns moraram uns tempos em sua casa. Somente pelo auxílio e pela influência daquele filho de Antero duas alentadas gerações puderam se educar e se instruir mais do que lhes permitiria a nossa matriz – Bambuí - e os parcos recursos do pai e dos irmãos. Muitos irmãos mais novos e filhos de todos os irmãos mais velhos passaram por aquela casa da Rua Direita, encaminhados pelo velho Salatiel para os colégios de Mariana, Ouro Preto e até Cachoeira do Campo.

Sou um desses anônimos Torres que por lá passaram, que ali lapidaram seus conhecimentos, seu viver, seu caráter enfim, sempre sob o olhar atento, o conselho meio escondido, os recados transmitidos sorrateiramente através da alegria e verborragia da Candinha. Naquela época não víamos isso, mas hoje sabemos que nosso caminho estava sempre iluminado por aquela figura, com seu farol clareando caminhos; não só dos parentes, mas de todos os discípulos que desfilaram diante do professor, do diretor, do político. O visionário que implantou obras educativas, quase anonimamente, sem se vangloriar disso; e que persistem até hoje.

Essa a imagem do parente já maduro, captada pelo olhar do menino, jovem engenheirando, que por Ouro Preto viveu durante anos; ela vem através de flashes que durante o viver e conviver foram ficando registrados nos escaninhos na memória. Uns claros e bem delineados, outros embaçados; outros ainda retocados pelas lendas, que de tanto repetidas se tornam verdadeiras. Aí vão alguns.

Primeiro, a imagem. Alto, branco ao contrario dos irmãos; como era branco aquele pescoço raramente visto, sempre envolto pelo colarinho abotoado, a gravata escura com o nó pronto e abotoada, não sei como, na camisa. Tudo coberto pelo paletó do indefectível terno azul marinho, salpicado de caspas.

Domingo. Finalmente domingo e até hoje sinto o cheiro e o gosto da magnífica macarronada do ajantarado. Nos raros dias quentes ele poderia até estar só de camisa, mas ao tomar lugar a mesa do almoço abotoava a gravata e vestia o paletó. Os sons da música clássica na vitrola do Maurílio ecoavam pela casa. – Seria uma das lendas? –

Final de férias, chegada a Ouro Preto. Inquirição completa sobre os manos e parentes de Bambuí. Ele sabia de tudo; talvez trocasse cartas com os irmãos. Telefone lá havia, mas em Bambuí não.

Quantas vezes o ouvi declamar, do poeta Guilherme de Almeida, um poema sobre o encanto de morrer segundo a ótica do sábio, do monge e outros mais, arrematando os versos com sua visão do encanto de viver. Podem consultar o poema. Ele o repetia por completo. Como os irmãos, tinha fixação pela morte aos 64 anos.

A mesa da sala coberta de papeis esparsos, trabalhos de alunos, anotações para aulas e trabalhos. Não sei, mas sempre estavam lá.

O caminho da Escola. Rigorosamente à mesma hora da manhã e da tarde subia a Rua Direita em direção a Escola de Minas, empunhando aquela pasta preta ou com livros nos braços. Passos longos e lentos, cabeça erguida. Lá ia ele, inspirando respeito e admiração de alunos e conhecidos.

Carnaval. Quarta feira de cinzas, início do vestibular. A alegria contagiante do ambiente. Abandonamos os livros e lá fomos os companheiros de pensão para a Rua São José. Eis que no meio da multidão surge aquela cabeça mais alta, conhecida. Um colega diz: - “Olha lá seu tio”. Vi e respondi: - “Meu tio não é nada, o pior é o gordo que vem manquitolando ao lado dele, meu pai.” Encontramos-nos. Abraços, risadas e meu pai proclamou: – “Não lhe disse mano? É meu filho, não seu. Hoje é noite de festa, não de estudo. Se tivéssemos cortado caminho pela Rua do Paraná até o Pilar não o encontraríamos na pensão.”

Outra vez o conselho do Salatiel. Não queria ver o sobrinho reprovado, decepcionado: - “Se é só para experimentar deixe o concurso para frente, faça um ano de anexo” - como se chamava o cursinho da Escola de Minas – “e deixe esse vestibular para o próximo ano.” Teimei e fui experimentar. Depois da primeira prova escrita me recebeu com um sorriso maroto e simplesmente disse: - “Que experimentar que nada, você está bem preparado.” Essa frase me entusiasmou e enfrentei o resto das provas com tranqüilidade. No dia da prova oral lá estava o diretor da escola a fiscalizar o andamento dos exames. Quando chamaram meu nome eu o vi sair sorrateiramente. Hoje vejo claro o motivo: evitar constrangimentos. Passei bem classificado. Comemoramos juntos com um dos poucos abraços que trocamos.

Viagens periódicas na rural da escola ao Rio de Janeiro. Sempre levando projetos e mendigando verbas da Universidade do Brasil, da qual a escola fazia parte. Era um martírio para a tia Candinha. Voltava sempre feliz, contando o tempo que faltava para se aposentar e morar em Copacabana. Um sonho apenas.

Até hoje me arrependo de o haver constrangido, seguindo uma diretiva do Diretório Acadêmico, ao adentrar sua sala com a desculpa de ser sobrinho e lhe mostrar um mal feito de professor contra o qual nossa turma estava em greve. Ele olhou aquilo, disse que devia ser engano do professor, mas que iria investigar. Não se falou mais sobre o assunto. No semestre seguinte a cadeira foi anulada para nossa turma e repetida em horas extras as quinta feiras à noite, ministradas pelo Dr. Alberto, irmão da tia Belinha.

O convívio dos ex-alunos da Escola de Minas é intenso. Em muitas reuniões solenes ou festivas, das quais participo inclusive nos almoço as quartas feiras, em quase todas capitais do Brasil e em cidades mineradoras onde residem muitos geólogos, sou recebido e conhecido como o sobrinho do Salatiel.

Meu primeiro emprego. Tímido, me apresentei ao presidente da empresa solicitando trabalho. Não fora aceito na Petrobras por não ter ainda certificado de reservista. Ele me dispensou desse documento desde que não o abandonasse assim que obtivesse o certificado e mandou-me voltar no dia seguinte; iria consultar dois professores com quem eu iria trabalhar. No dia seguinte recebeu-me muito bem; eu fora elogiado por ambos; e observou: - ”O que mais o qualifica é ser sobrinho do Salatiel, o melhor e mais sério professor que já tive. Esta informação, que não foi colocada no currículo, é a garantia de que você irá honrar o compromisso.” Lá fiquei por mais de 40 anos tornei-me amigo e sócio do patrão de quem me despedi a pouco tempo junto a uma cova.

Esse o Salatiel que conheci.

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