terça-feira, 21 de maio de 2013


Espaço cultural: 8º Conto

Leda Torres de Andrade
Nizo com o mano fão e os amigos
João Severo e Ziquinha, na comemoração
dos seus 80 anos em 1983.

Meu pai na idade madura era uma figura que impressionava. Com o passar do tempo e com a gula descontrolada havia engordado acima do que era viável. Havia acumulado quilos, como acumulara cultura e saber. Herdara do pai a vasta cabeleira branca, a enorme barriga e a chefia política da cidade. Como o velho pai, o Coronel Antero, ele era advogado.
Na juventude contraíra uma doença na articulação do fêmur que o deixara com uma perna menor que a outra. Por conseguinte, mancava. Apesar disso tinha um porte elegante, desempenado e jamais se queixou de alguma dor na coluna.
Nada nele tinha meias medidas, como a própria figura. Vivia a vida gulosamente.
Éramos treze filhos e como o pai educou os seus dezessete, ele nos educou.
Com muito requinte, muita severidade e muita cultura. Curiosamente não percebíamos que ele nos ensinava. À mesa, durante o almoço e jantar, ele declamava com sua voz poderosa, sonetos e poemas de sua preferência, clássicos da literatura e nos contava episódios da história universal como se fossem casos. Depois, nos inquiria: datas, personagens, detalhes. Quando nos fazia dormir, cantava.
Era um comilão. Gostava de tudo, mas preferia o trivial caboclo, o da roça. Quando minha mãe chamava para o almoço, quem estivesse no escritório ia para a mesa com ele. Servia a todos e sempre terminava as refeições antes de todos. Por isso sofria de úlcera no duodeno e pedras na vesícula. Tinha cólicas terríveis que nos deixavam a todos assustados e pesarosos. Vivia sempre de dieta, apesar de ser glutão. Tomava chá, mingaus e depois de devorar o prato de salada dizia com enfado: - “Já fiz minha dieta. Agora posso comer!”.
E depois, se deitava para fazer o repouso. Era um rito sagrado e inevitável, para regularizar a digestão. Nada o desviava desse hábito arraigado. Com certeza provinha do costume ibérico da sesta.
Nas ocasiões em que as dores se manifestavam, acudia-o o irmão que era médico. Era de uma dedicação sem limites. Chegava com seu passinho miúdo, sua maleta mágica e acalmava os gritos e gemidos do mano, devastado pela dor.
- Calma mano, vamos dar um jeito nisso.
E se punha a aplicar injeções na enorme barriga. As dores iam cedendo, o doente se acalmando e logo, logo, dormia sossegado.
Um dia, a crise veio brava. Meu pai rolava na cama, soltando gemidos lancinantes e clamando pelo irmão que tardava para dar-lhe alívio.
Ora, defronte à nossa casa morava um jovem, filho de um grande amigo de meu pai. Era um bando de amigos muito unidos, destas amizades que envolvem a juventude e que jamais se acabam. Haviam feito seu curso preparatório no colégio Alfredo Baeta, em Ouro Preto e cultivavam, em comum, lembranças e carinho que o tempo não destrói.
Então, o amigo de meu pai, grande fazendeiro do lugar, que se chamava João Severo, visitava o filho. Ouvindo os gritos e gemidos chegou debaixo da janela do quarto, que dava para a rua, e rindo gritou brincalhão, lá de baixo, no passeio:
- Ta na hora Bufana[1]? Posso buscar a comadre Amélia[2]?
Entre gemidos o doente gritou:
- Pode!
- Já escolheu o nome Bufana? Brincou maroto, o amigo.
Em meio aos gritos e gemidos, meu pai respondeu, aceitando a brincadeira:
- Se for homem vai se chamar José, se for mulher, Maria. Mas se for bosta vai chamar João Severo!








[1] Bufana era o apelido que os amigos lhe haviam dado na infância.
[2] Era a parteira da cidade, querida por todos.

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