Espaço cultural: 8º Conto
Leda Torres de Andrade
Nizo com o mano fão e os amigos João Severo e Ziquinha, na comemoração dos seus 80 anos em 1983. |
Meu
pai na idade madura era uma figura que impressionava. Com o passar do tempo e
com a gula descontrolada havia engordado acima do que era viável. Havia
acumulado quilos, como acumulara cultura e saber. Herdara do pai a vasta
cabeleira branca, a enorme barriga e a chefia política da cidade. Como o velho
pai, o Coronel Antero, ele era advogado.
Na
juventude contraíra uma doença na articulação do fêmur que o deixara com uma
perna menor que a outra. Por conseguinte, mancava. Apesar disso tinha um porte
elegante, desempenado e jamais se queixou de alguma dor na coluna.
Nada
nele tinha meias medidas, como a própria figura. Vivia a vida gulosamente.
Éramos
treze filhos e como o pai educou os seus dezessete, ele nos educou.
Com
muito requinte, muita severidade e muita cultura. Curiosamente não percebíamos
que ele nos ensinava. À mesa, durante o almoço e jantar, ele declamava com sua
voz poderosa, sonetos e poemas de sua preferência, clássicos da literatura e
nos contava episódios da história universal como se fossem casos. Depois, nos
inquiria: datas, personagens, detalhes. Quando nos fazia dormir, cantava.
Era
um comilão. Gostava de tudo, mas preferia o trivial caboclo, o da roça. Quando
minha mãe chamava para o almoço, quem estivesse no escritório ia para a mesa
com ele. Servia a todos e sempre terminava as refeições antes de todos. Por
isso sofria de úlcera no duodeno e pedras na vesícula. Tinha cólicas terríveis
que nos deixavam a todos assustados e pesarosos. Vivia sempre de dieta, apesar
de ser glutão. Tomava chá, mingaus e depois de devorar o prato de salada dizia
com enfado: - “Já fiz minha dieta. Agora posso comer!”.
E
depois, se deitava para fazer o repouso. Era um rito sagrado e inevitável, para
regularizar a digestão. Nada o desviava desse hábito arraigado. Com certeza
provinha do costume ibérico da sesta.
Nas
ocasiões em que as dores se manifestavam, acudia-o o irmão que era médico. Era
de uma dedicação sem limites. Chegava com seu passinho miúdo, sua maleta mágica
e acalmava os gritos e gemidos do mano, devastado pela dor.
-
Calma mano, vamos dar um jeito nisso.
E
se punha a aplicar injeções na enorme barriga. As dores iam cedendo, o doente
se acalmando e logo, logo, dormia sossegado.
Um
dia, a crise veio brava. Meu pai rolava na cama, soltando gemidos lancinantes e
clamando pelo irmão que tardava para dar-lhe alívio.
Ora,
defronte à nossa casa morava um jovem, filho de um grande amigo de meu pai. Era
um bando de amigos muito unidos, destas amizades que envolvem a juventude e que
jamais se acabam. Haviam feito seu curso preparatório no colégio Alfredo Baeta,
em Ouro Preto
e cultivavam, em comum, lembranças e carinho que o tempo não destrói.
Então,
o amigo de meu pai, grande fazendeiro do lugar, que se chamava João Severo, visitava
o filho. Ouvindo os gritos e gemidos chegou debaixo da janela do quarto, que
dava para a rua, e rindo gritou brincalhão, lá de baixo, no passeio:
Entre
gemidos o doente gritou:
-
Pode!
-
Já escolheu o nome Bufana? Brincou maroto, o amigo.
Em
meio aos gritos e gemidos, meu pai respondeu, aceitando a brincadeira:
-
Se for homem vai se chamar José, se for mulher, Maria. Mas se for bosta vai
chamar João Severo!
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