terça-feira, 21 de maio de 2013


Cantinho da memória 2: NISO TORRES


Maria Lúcia Torres


 
Niso comemora seus 80 anos com manos, cunhadas e amigas.

Niso Torres nasceu em 1903; faria 110 anos. Aos oito anos perdeu sua mãe, mas foi acolhido pelas tias, primos e primas, a quem dedicou por toda a vida profundo afeto. Presciliana, tia paterna, Dedê e Arquidâmia, tia e prima maternas, assumiram o cuidado das crianças órfãs, até as segundas núpcias do pai viúvo. Em 1913, aos 10 anos de idade, ingressou na escola do Professor José Alzamora e conquistou o diploma da formação primária em 1917. Em 1919 seguiu para Ouro Preto, ali permanecendo até completar a sua formação preparatória. Matriculou-se em 1924 na Faculdade de Direito em Belo Horizonte, da qual sairia advogado no dia 25 de dezembro de 1928.
 Niso era filho de Antero Torres e de Alcida Augusta Torres e cresceu num ambiente social permeado pelas disputas familiares, entre famílias que ele indiscriminadamente estimava. Imagino que pela admiração que sentia pelo pai infundiu-se nele a aspiração de tornar-se advogado. Ele amava a sua terra e como seu pai manteve durante anos, nas lides de sua vida profissional, o hábito de vasculhar o espaço amplo do município, ultrapassando suas fronteiras, em busca de informações sobre as origens da conformação fundiária e da divisão das glebas no território da freguesia de Santana do Bambuí. E tanto ele como o pai deixaram fartas e minuciosas anotações sobre suas pesquisas de campo nas visitas ao meio rural Assim, ao longo do tempo, ele foi estreitando os laços de um convívio amistoso com uma parcela grande dos habitantes da região do alto São Francisco; e como seu pai alinhava ao exercício da profissão a ardorosa dedicação à militância política.      
O distrito de Medeiros foi um dos locais onde Niso exerceu suas atividades politicas e profissionais. A foto retrata da direita para a esquerda: Jerônimo Leite de Faria, Joaquim Calixto, Juca Leandro, Niso, Ibraim de Faria Leite, Dr. José Agnaldo, Plínio Malfitano, Chicrala Miguel Elias, Geraldo Mendes.

A nós, seus filhos, não nos era transmitida a fórmula e a origem dos conflitos familiares e políticos subjacentes ao espaço público que compartilhávamos com a família e a sociedade. Mas, convivendo com aquele homem ardoroso, que prezava com vigor as normas do bem viver em sociedade, nós estávamos sendo educados por um humanista, um homem rigorosamente público. Um homem que, imbuído de ideais de justiça, paz e harmonia, engenhosamente enfrentou e combateu - armado de afeto, respeito e autoridade - a trama dos conflitos sociais, regidos pelo sistema coronelista, vigente no país até 1930, e que mantinha o espaço público ocupado pelas lealdades da vida privada.
Nos tempos de sua formação em Belo Horizonte residiu na casa da tia Chica, irmã da Quinha, bambuienses da família Bahia. Um dia antes da formatura, Niso conversou com Ozório e Quinha, pai e mãe de Alda, pedindo-a em casamento; nessa data anotou em seu diário:
Os noivos Niso e Alda no parque municipal/Bh em 1928.


Meu primeiro dia de noivo. Fomos juntos à missa dos bacharelandos e juntos voltamos. À noite rumamos para a Escola. Eu estive vivamente emocionado nesse dia. Colei grau e o amor me sorriu, numa linda promessa de ventura.[1] Estado de espírito que ele e Alda souberam manter pela vida afora, apesar dos sofrimentos, apertos e trabalhos que, afinal, não lhes faltaram.  
Nos dez anos vividos entre Ouro Preto e Belo Horizonte, ele fundou os alicerces de sua vida profissional que respaldados no prestígio e sabedoria do pai contribuíram para a formação de sua personalidade de cidadão. No Brasil, os anos de 1920 e 1930 foram marcados por agitações sociais e políticas em defesa de mudanças que favorecessem a modernização e a democratização da sociedade e do Estado que deveria planejar o desenvolvimento e a ampliação da cidadania, despertando no indivíduo o interesse pelo bem comum. Esse movimento, coroado pela Constituição de 1934, de curta duração, foi duramente abalado pelo golpe do Estado Novo em1937; contudo, vigorosamente preservado por segmentos progressistas que ocupavam postos estratégicos no governo, foi consagrado pela Constituição de 1946 e, em suas grandes linhas, vigorou até 1964. Formado nesse ambiente, ele conviveu com muitas das lideranças que em Minas, a partir de 1930, assumiram a direção do Estado e junto delas, ao longo de sua vida pública, defendeu com lealdade a aplicação daqueles princípios democráticos consagrados pela Constituição. No seu discurso de posse na Câmara de vereadores, para a qual foi eleito presidente, provavelmente em 1936, ele considera:
Niso discursa em cerimônia civica.
“... Há cinco anos atrás, muito outro era o panorama. Esfacelado e dividido, o Município se debatia numa luta inglória. Avassalado pela politicagem, cheio de ódios, de competições e perseguições pessoais, era a sua situação objeto da crítica dos vizinhos e de acres censuras de toda parte... Pacificar o Município parecia tarefa humanamente impossível, mas seria fácil governar sem ódios. Inaugurou-se, então, o regime da separação da política e da administração. (...) A administração deve existir para promover o bem coletivo, para distribuir benefícios e encargos a todos, sem consideração aos compromissos ou idéias políticas do indivíduo. (...) Foi compreendendo estes propósitos e aplaudindo estas atitudes, que os ânimos serenaram, para, numa comovente unanimidade, dedicarem-se todos ao bem comum.
 Niso viveu intensamente sua vida pública e profissional e, junto com Alda, construiu um lar saudável, ancorado em sólidos afetos e harmoniosa convivência. Deixaram enorme descendência; criaram onze filhos, viram nascer e crescer netos e bisnetos, em levas permanentes. Queriam todos juntos deles; mas, como a trama da vida nega essa possibilidade, o recurso sempre utilizado foi a correspondência. Cartas, muitas cartas para seus filhotes e netos queridos. Em 1964, o golpe militar colocou a múltipla existência de partidos políticos sob controle, em nome da preservação da segurança nacional. Rompe-se o princípio liberal-comunitarista que, de um modo geral, vigorara desde os anos 1930, princípios que Niso defendeu desde sua mocidade e que lhe eram caros. Interceptado o movimento de uma sociedade que seguia o seu curso pluralista, imposta regra única e excludente, contrária à sua longa defesa da democracia, Niso se calou. Não era mais um jovem, muitos companheiros da sua geração haviam dispersado e ele amargou sozinho, cada vez mais só e mais calado os longos anos da ditadura militar. Morreu em 1988, ano da promulgação da Constituição Cidadã, cujos trabalhos não teve força nem entusiasmo para acompanhar.
O velho bivô Niso recebe o carinho de sua bisneta Carolina.
Desde o agravamento de sua doença, Alda, ainda no vigor de seus 70 anos, deu asas à sua poética numa manifestação de surpreendente criatividade; e valendo-se dessa linguagem empunhou a bandeira que ele mantivera erguida, sustentando em muitos de seus versos aquele símbolo do espírito público que os dois defenderam ao longo de suas vidas.           



[1] Livro de registros diários escrito por Niso em 1928, para registrar o convívio, o namoro e o noivado com Alda; dia 25/ 12/ 1928.

Nenhum comentário:

Postar um comentário