Espaço cultural: 7º Conto
Leda Torres de Andrade
Hermógenes discursando na Lagoa dos Monjolos. ao fundo Quinha, Regina e Eni. |
Havia na cidade um
dentista de reconhecida competência profissional. Tinha uma mão tão leve para
limpar e curar um dente, que o medroso cliente não sentia nem a maldita broca
do motor, embora o dele fosse daqueles de pedal e o barulho irritante. Não se
percebia nem mesmo a agulhada da anestesia. Ele contava estórias, dava sábios
conselhos, e de tal maneira entretinha o paciente, que quando o distinto
percebia, o dente estava na ponta do boticão.
Naturalmente seus
clientes eram todos correligionários políticos. Não era concebível que um
adversário procurasse um dentista de outro partido para tratar os dentes. De
sorte que sua clientela era composta de compadres e comadres, amigos e
parentes. O bando de sobrinhos ficava sempre para o fim do dia.
Esse dentista era um
caboclo na mais plena acepção da palavra. Trigueiro, enxuto de carnes,
desleixado no vestir e no viver, gostava de criar passarinhos e de beber uma
boa cachaça. Gostava de damejar...
Todos sabiam da sua
cumplicidade com certa dama alegre, que se dispunha a agradar bondosamente o
amigo. E ele apreciava as mulheres bonitas e alegres, pois ele próprio era
alegre, risonho, divertido e sábio.
Falava um português
corretíssimo, ricamente entremeado dos mais sonoros e cabeludos palavrões. Era
um contraste verdadeiramente curioso o seu linguajar. Bambuí era um lugar de
política exacerbada, e ele eventualmente era solicitado, sem possibilidade de
recusa, a discursar em público; e quando as circunstâncias assim o exigiam,
emergia da figura desleixada do dentista um orador de refinada e surpreendente
eloqüência. Era um dos dezessete filhos do Coronel Antero.
Curiosamente, vez por
outra, em meio à linguagem chula que normalmente usava, saia espontaneamente
algum termo francês ou algum dito em latim.
Nos fins de semana ia
cuidar de sua fazenda. Dedicava-se então, abnegadamente, ao costeio do gado e
ao cultivo da terra. Era uma fazenda grande e requeria trabalho. Montava então
no seu cavalo bem repassado, chamado Rouxinol e cavalgava para onde houvesse
necessidade de providências. A inclemência do sol ou o emaranhado das touceiras
de mato, não o incomodavam. Gostava da roça. Muitas vezes, quando o desarranjo
do serviço exigia sua presença ele se deixava ficar na fazenda por dias e dias.
Curiosa figura de
homem! Era na verdade um filósofo esse dentista fazendeiro, provavelmente mais
dedicado às coisas da terra que à ciência.
Na cidade, sua casa era
graciosa: baixa na frente, com as janelas abertas para a calçada e um pequenino
jardim gradeado ao lado. Atendia a clientela num pequeno gabinete com portas de
mola vai-vem e vidro amarelo bisotado, que ficava na parte frontal. Os fundos
eram altos, e uma escada de madeira descia para o cômodo no rés-do-chão. Era
ali que ele criava passarinhos.
Chamava-se Hermógenes e
todos os dias subia seu desfiladeiro, que era tão somente uma pequena rua em
aclive, defronte sua casa. Não ia dar nas Termópilas, mas na zona boêmia.
Bastava atravessar a linha do trem. Lá ele travava suas batalhas.
Nem sempre saia
vitorioso, pois sua mulher era terrivelmente brava e não lhe dava tréguas.
Trazia a casa rigorosamente limpa, tinha mãos de fada na cozinha, mas pesadas
na guarda do que lhe pertencia. De sorte que o guerreiro não sabia o que era
paz.
Tinha ele um filho, os
mais velho, que se tornou também dentista, seguindo os passos do pai. Mais
tarde, ouvindo o apelo do sangue, tornou-se advogado.
Bilhete do Mogi no caderno de notas do Nizo, na da ta de nascimento do Hênner. |
Mas então,
recém-formado, não possuía meios para montar o próprio consultório. Resolveram
ele e o pai dividirem o que já havia. Era um bom arranjo para o pai, pois assim
ele teria mais tempo livre. Estabeleceram, pois os horários. Um atenderia os
clientes na parte da manhã, o outro no horário da tarde.
Certo dia, ao entrar no
gabinete de trabalho, o jovem dentista deu com os olhos em um pedaço de papel
colocado no assento da cadeira reta destinada aos clientes. Era um recado do
pai, que dizia:
“Hênner,
colega e amigo
O
cabra velho subiu.
Quem
perguntar por ele
Manda
a puta que pariu”
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