sexta-feira, 12 de julho de 2013

Espaço cultural: 7º Conto
Leda Torres de Andrade

Hermógenes discursando na Lagoa dos Monjolos.
ao fundo Quinha, Regina e Eni.
Havia na cidade um dentista de reconhecida competência profissional. Tinha uma mão tão leve para limpar e curar um dente, que o medroso cliente não sentia nem a maldita broca do motor, embora o dele fosse daqueles de pedal e o barulho irritante. Não se percebia nem mesmo a agulhada da anestesia. Ele contava estórias, dava sábios conselhos, e de tal maneira entretinha o paciente, que quando o distinto percebia, o dente estava na ponta do boticão.
Naturalmente seus clientes eram todos correligionários políticos. Não era concebível que um adversário procurasse um dentista de outro partido para tratar os dentes. De sorte que sua clientela era composta de compadres e comadres, amigos e parentes. O bando de sobrinhos ficava sempre para o fim do dia.
Esse dentista era um caboclo na mais plena acepção da palavra. Trigueiro, enxuto de carnes, desleixado no vestir e no viver, gostava de criar passarinhos e de beber uma boa cachaça. Gostava de damejar...
Todos sabiam da sua cumplicidade com certa dama alegre, que se dispunha a agradar bondosamente o amigo. E ele apreciava as mulheres bonitas e alegres, pois ele próprio era alegre, risonho, divertido e sábio.
Falava um português corretíssimo, ricamente entremeado dos mais sonoros e cabeludos palavrões. Era um contraste verdadeiramente curioso o seu linguajar. Bambuí era um lugar de política exacerbada, e ele eventualmente era solicitado, sem possibilidade de recusa, a discursar em público; e quando as circunstâncias assim o exigiam, emergia da figura desleixada do dentista um orador de refinada e surpreendente eloqüência. Era um dos dezessete filhos do Coronel Antero.
Curiosamente, vez por outra, em meio à linguagem chula que normalmente usava, saia espontaneamente algum termo francês ou algum dito em latim.
Nos fins de semana ia cuidar de sua fazenda. Dedicava-se então, abnegadamente, ao costeio do gado e ao cultivo da terra. Era uma fazenda grande e requeria trabalho. Montava então no seu cavalo bem repassado, chamado Rouxinol e cavalgava para onde houvesse necessidade de providências. A inclemência do sol ou o emaranhado das touceiras de mato, não o incomodavam. Gostava da roça. Muitas vezes, quando o desarranjo do serviço exigia sua presença ele se deixava ficar na fazenda por dias e dias.
Curiosa figura de homem! Era na verdade um filósofo esse dentista fazendeiro, provavelmente mais dedicado às coisas da terra que à ciência.
Na cidade, sua casa era graciosa: baixa na frente, com as janelas abertas para a calçada e um pequenino jardim gradeado ao lado. Atendia a clientela num pequeno gabinete com portas de mola vai-vem e vidro amarelo bisotado, que ficava na parte frontal. Os fundos eram altos, e uma escada de madeira descia para o cômodo no rés-do-chão. Era ali que ele criava passarinhos.
Chamava-se Hermógenes e todos os dias subia seu desfiladeiro, que era tão somente uma pequena rua em aclive, defronte sua casa. Não ia dar nas Termópilas, mas na zona boêmia. Bastava atravessar a linha do trem. Lá ele travava suas batalhas.
Nem sempre saia vitorioso, pois sua mulher era terrivelmente brava e não lhe dava tréguas. Trazia a casa rigorosamente limpa, tinha mãos de fada na cozinha, mas pesadas na guarda do que lhe pertencia. De sorte que o guerreiro não sabia o que era paz.
Tinha ele um filho, os mais velho, que se tornou também dentista, seguindo os passos do pai. Mais tarde, ouvindo o apelo do sangue, tornou-se advogado.
Bilhete do Mogi no caderno de notas do Nizo,
na da ta de nascimento do Hênner.
Mas então, recém-formado, não possuía meios para montar o próprio consultório. Resolveram ele e o pai dividirem o que já havia. Era um bom arranjo para o pai, pois assim ele teria mais tempo livre. Estabeleceram, pois os horários. Um atenderia os clientes na parte da manhã, o outro no horário da tarde.
Certo dia, ao entrar no gabinete de trabalho, o jovem dentista deu com os olhos em um pedaço de papel colocado no assento da cadeira reta destinada aos clientes. Era um recado do pai, que dizia:

“Hênner, colega e amigo
O cabra velho subiu.
Quem perguntar por ele
Manda a puta que pariu”


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