terça-feira, 21 de maio de 2013

Torresmo nº 5         Maio de 2013

Editorial:
Galeria dos filhos de Antero e Alcida.

Vamos para o quinto número do Torresmo. Desta vez com as histórias da Pepita, do Niso e do Salatiel.

Paulo Sérgio enviou com presteza à redação do Torresmo o texto sobre seu avô, o Salathiel, nos lembrando do professor, do catedrático, do reitor; da sua religiosidade, da sua sabedoria. Salatiel, naquela distante Ouro Preto, nem assim estava distante da família. Como lembra o Naldo – nas suas memórias sobre o tio e professor – ele acolheu com carinho e cuidado irmãos mais novos e sobrinhos que iam estudar em Ouro Preto. Suas visitas a Bambuí eram sempre festivas. A grande novidade fica por conta do viés político: foi vereador! Pelas cartas trocadas com o mano Niso – as quais o Torresmo teve acesso – verifica-se que acompanhou também com interesse o desenrolar dos compromissos políticos da família.
Maria Lúcia fala de seu pai, o Niso, aquele gordo, comilão, alegre e brincalhão, muito afetuoso, mas que não deixava de fazer jus ao apelido de infância: Bufana. Com a família, com os amigos, com os clientes, com os correligionários ou adversários políticos “tretou relou” arreganhava as ventas e subia nas tamancas. Como presença de destaque na política bambuiense e como causídico tarimbado nas áreas do direito se aproximava muito da figura do pai, com quem iniciou sua vida profissional. Lembrar do Niso é lembrar de Alda, sua companheira de toda a vida. Desde a conquista, registrada em um diário, até o fim, num leito de hospital, Alda esteve a seu lado apoiando-o e incentivando-o. Ilustrando o texto de Maria Lúcia o Torresmo publica um trecho de carta que Niso lhe enviou, para São Paulo, nos anos 1970.

Pepita, aquela figura delicada, de uma religiosidade extrema, que nos ensaiava para as coroações, que fazia nossas coroas e palmas e muitas vezes os versos que deveríamos cantar a Nossa Senhora, que nos ensinava o catecismo para a 1ª comunhão, que nos acolhia com alegria, que fazia o melhor café e as melhores rosquinhas ocupa o primeiro cantinho da memória nesta edição. Giovani editou até 1944 – fica nos devendo mais de quarenta anos da vida de sua mãe – o texto que Liginha escreveu para a sobrinha distante, onde narra detalhadamente uma parte da história da Pepita e do Zévis. Também sobre a Pepita o Torresmo publica uma carta de sua neta Ludimira, filha da Tetela, testemunhando a prática da catequese vivida e transmitida por essa educadora cristã.

Para as colunas Perfil e Espaço Cultural foram selecionados dois personagens do mesmo núcleo familiar: Natália faz uma rápida descrição de seu pai, o Dalmo, que deu continuidade, em Bambuí, a uma atividade tradicional na família de Antero Torres – o exercício do direito; o conto da Leda nessa edição versa sobre um caso jocoso do Niso.

O Torresmo foi buscar na história política nacional um episódio da nossa tão machucada construção democrática – a Assembléia Nacional Constituinte de 1934 – destacando o envolvimento da família na eleição da bancada mineira.

A coluna Agenda não trás nenhuma atividade particular de um Torres. Ninguém enviou sua agenda ao jornal. Contudo nossa grande agenda do momento é o 2º Encontro em Bambuí. Sua organização caminha a todo vapor. Confirmações, depósitos, reuniões, troca de e-mails, telefonemas e encomendas vão demonstrando uma animação crescente, que oxalá irá desembocar em grande manifestação de alegria, emoção, entusiasmo e fraternidade entre nós, nos dias do encontro.

Local do evento na antiga chácara do Olo
 O Torresmo informa que o evento do sábado, dia 27 de julho, não será mais no Cantinho do Céu. A Comissão Organizadora de Bambuí optou por um lugar mais agradável, arborizado, com muitas áreas de lazer e mais barato. É a antiga chácara do Olo Torres. E afinal, festejaremos nosso encontro nas terras que foram do Simphrônio Torres.
Na noite de sexta-feira, no Capão dos Óculos, o truco vai ocupar um lugar especial. O Torresmo publica a    proposta do Benard com as regras básicas para o torneio. Confira.
Afinem suas violas e gargantas! Vamos que vamos povo do Antero!

Na coluna Opinião são publicados quatro e-mails com comentários sobre a edição de nº 4. Duas delas são erratas: Rodrigo Barbosa Torres, filho do Duílio solicita a correção do nome de sua esposa e Eva corrige a legenda da foto de seu pai no almoço comemorativo da emancipação de Tapiraí. O Torresmo se desculpa pelos enganos e agradece as correções, considerando muito salutar esse vai e volta. A árvore genealógica anexa ao blog desde a edição de nº 2, também foi atualizada.



Opinião:

15 de março de 2013
Cara Prima Maria Luiza, tudo bem?
Encaminhei o e-mail abaixo ao primo Benício para correção tanto do meu nome quanto do de minha atual esposa.
Gostaria que fizessem a gentileza de correção da árvore para que eu possa mostrar e dividir estes convites e página com minha esposa sem constrangê-la,
Ele havia me respondido, conforme e-mail abaixo, que já havia sido feito a correção, e para minha surpresa entrei na página do e-mail que você encaminhou e verifiquei que ainda não havia sido colocado o nome de minha atual esposa, Ana Cláudia Afonso Valladares Torres. Ela fez questão de colocar o nome Torres no sobrenome dela, coisa que muito me orgulhou. Inclusive havia encaminhado a árvore que o primo Benício havia me encaminhado para que ela visse.
A que está em vermelho, Alessandra, é a mãe dos meus filhos, com a qual nunca me casei.
Por isso venho solicitar-lhe interferência neste assunto para que seja feita a devida justiça e correção devida para que eu possa apresentar a ela os eventos e esta maravilhosa página com as histórias de nossa família Torres sem constrangê-la,
Certo de vossa intervenção.
Um grande abraço a todos, do primo,
Rodrigo Barbosa Torres (inclusive meu nome não é Andrade e sim Barbosa, conforme e-mail enviado ao primo Benício abaixo).

16 de março de 2013
Maria Luiza, querida,
Ficou excelente o Torresmo 4!
Parabéns!
Que você continui sendo estrada e encontro, perfume de dia nublado e quentinho que venha encher de suavidade todos os dias de seus amigos e familiares.
Nosso amor e agradecimentos
Olímpio e Lucy

24 de março de 3013 
Oi, Benicio,

Antes de tudo nota 10 para a recepção em sua casa. Como sempre Maria Inês e toda a família brilham!!
Se for possível retocar os nomes das pessoas que estão na foto com papai no Torresmo 4 , o correto é assim:
Da esquerda para a direita: Tonico Paulinelli, Odilon Araújo, (sogro do Der), Olívio Alves Ribeiro, Mauricio de Andrade, Wander de Andrade, Nicolino Rocha, Euryalo Torres, Monsenhor José Aparecida Pereira.
Beijos,
Eva


01 de abril de 2013-05-18
Maria Luiza,

Mais uma vez, me deliciei com o Torresmo! Que legal ver as histórias de nossa família estampadas na web!
Amo as recordações, que são parte significativa de minha construção como pessoa.
Curti ler sobre o Vovô Lico, que não conheci e o tio Totonho, do qual muito ouvi minha mãe falar...
Delicioso o perfil do querido tio Ilo!
Obrigada por esse momento de pura fruição!
Beijos,
Janaína
(Filha da Zenaide, neta do Lico).


O2 de abril de 2013
Prezada Maria Luiza:

Por seu intermédio, desejamos transmitir a toda a equipe produtora do Torresmo os nossos Parabéns: pela iniciativa, pelo nome, pela produção, pelo sucesso, enfim. O Torresmo está mesmo uma delícia! Está conseguindo fazer-nos recordar ou até mesmo conhecer as raízes de nossa família tão numerosa e abençoada.
Deus continue iluminando a todos!
Um abraço dos primos:
Zenaide e Etevaldo



18 de maio de 2013

Oi,
Meu nome é Daniel Ribeiro. Estava pesquisando na internet a procura de informações sobre minha família e me deparei com a linda carta que está no seu blog. Eu sou descendente de Francelino José Cardoso. Ele é pai do Francelino José Cardoso Junior, que por sua vez é pai de Clotário Cardoso, que é pai de Marcelina Cardoso, que é mãe do meu pai, Maurício Cardoso Ribeiro. Fiquei comovido ao ver a carta escrita por ele. Parabéns pelo blog. 
Gostaria de saber se vocês têm mais informações do Francelino José Cardoso ou alguma foto? Se tiverem, eu tenho muito interesse.
Muito obrigado,
Daniel Ribeiro


Cantinho da Memória 1: Maria Augusta Torres de Souza – Pepita

                                                                             Maria Lígia Torres de Souza - "Liginha”
A jovem e serena Pepita.


Nota explicativa
Esse perfil foi escrito em 2005 pela Liginha a pedido de Louise, filha de Maria Alice (Didice) que mora na França. Trata-se de um relato carinhoso de quem mais tempo conviveu com Mamãe. A mim, Giovani, o que menos conviveu com ela, coube a tarefa de organizar o texto. Procurei deixar impresso o caráter coloquial produzido por Liginha, testemunha de incontáveis conversas de Mamãe com os filhos ao longo da vida. Ao escrevê-lo Liginha seguiu tão somente um roteiro, o do coração, ao sabor das lembranças. Incluí os subtítulos para facilitar a leitura e identificação de fatos que retratam a dinâmica vivida pela família.  Parei em 1944.  Acho que está de bom tamanho.  Anexo um texto de uma das netas, Ludimira, filha da Tetela, sobre a "Pepita, catequista", esse lado que filhos, sobrinhos, netos e incontáveis bambuienses conheceram de Mamãe.

Emocionado, muitas vezes fui às lágrimas. Dizem que saudade é presença na ausência. Ao organizar esses registros carinhosos que Liginha presenteou as sobrinhas netas de além mar fixei-me na presença delicada dessa Pepita de ouro que encheu e enche de luz as nossas vidas. Saio dessa tarefa sentindo-me um homem melhor. Muito feliz em compartilhar com vocês esses relatos. Com a palavra, Liginha.

1. Sobre o apelido "Pepita": um presente do Vovô Antero e Vovó Alcida
Mamãe foi a quarta filha de Antero Torres e Alcida Augusta Torres. Ela contava que Vovó sofreu muito quando de seu nascimento e que Vovô dizia-lhe: "- Canta, Alcida, para a criança nascer." Na ocasião haviam musicado um poema, "Pepita" , de Casimiro de Abreu escrito em 1858. Vovó que tocava violão e gostava de cantar logo aprendeu a música. E foi essa música que cantou a pedido do Vovô. Era 23 de maio de1902. Mamãe contava que nasceu tão logo a Vovó cantou e que Vovô teria dito:
“- Pronto  Alcida! Sua Pepita nasceu!”

O batizado com o nome de Maria Augusta demorou a acontecer. E o apelido "Pepita" perenizou essa cena carinhosa dos nossos avós. "Uma Pepita de ouro nas mãos do Pai", disse Padre Antenor quando do seu falecimento.

Pepita com as cunhadas Juracy, Alda, Anna e Belinha.

2. Sobre o jeito terno de ser e viver em família
Ela contava que, de manhã cedinho, Vovô Antero os acordava cantando e batendo palmas. Eles respondiam cantando e iam todos tomar banho na bica do monjolo. Só o menor não tomava o banho frio. Aí, sim, vinha o café da manhã. Quando foi colocada a rede de água e esgotos em Bambuí Mamãe fez de tudo para introduzir esse costume aqui em casa. Falava dos irmãos fortes que tinha. Mas não pegou...
Logo em seguida iam para o quintal com o Vovô e a Vovó Alcida. Todos tinham uma planta para cuidar. Mamãe lembrava que chorava para regar as plantas como os irmãos, mas Vovô lhe dava um copo com água e uma colher para molhar um pé de couve.
Certa vez Mamãe não foi para o quintal para o banho frio matutino. Ficou em casa tomando conta do tio Salatiel que estava dormindo. Bateram na porta e ela foi atender. Era um leproso pedindo água. Quando ela chegou com o copo d’água e estendeu-lhe ouviu do mesmo: “- Põe na minha boca, não tenho mãos". Ela o fez e foi abençoada por ele. Saiu correndo e chorando muito. Rodeada pelos irmãos, aos soluços, contou o acontecido. Vovô e Vovó Alcida parabenizaram a filha pelo gesto caridoso e humanitário.
Almoçavam por volta de 10h00 horas, lanchavam às 14h00 e jantavam às 16h00 horas.
À tardinha Vovó Alcida sentava-se junto a porta da casa e ficava conversando com tia Dedê enquanto as crianças brincavam até o anoitecer. tia Dedê era irmã da Vovó e mãe da tia Ana. Maria Augusta era o nome dela.

3. Falecimento da Vovó Alcida
Vovó faleceu no dia 19 de janeiro de 1912, uma quinta feira. Estava grávida do décimo filho. Neste dia, à hora do almoço, Vovó começou a sentir as dores do parto. Vovô já estava na mesa. Mamãe passou diante do quarto e ouviu os gemidos. Nos seus 9 anos, entrou e perguntou a Vovó o que estava acontecendo. Ao que ela respondeu: "- Vai filha, não diga nada para o seu pai. Tem arroz com suã e ele gosta muito." Nesse momento entra a tia Iracema que chamou correndo o Vovô que logo providenciou a vinda do médico. Foi uma gravidez de risco, com pressão arterial alta e muito inchada. Estavam também presentes Vovó Mariana e tia Persiliana, irmã do Vovô. Com muito sofrimento nasceu a criança com a presença do médico, Dr. Benevides. Mas faleceu em seguida. Vovó continuava mal. Em determinado momento o médico saiu do quarto dizendo ao Vovô: "- Ela está com muita vergonha. Vou ficar aqui". De vez em quando entrava para examiná-la. Mais tarde faleceu. Mamãe contava que quando a Vovó Mariana deu a notícia os filhos todos abraçaram o Vovô chorando. Muitos anos mais tarde, já moça, Mamãe ouviu do tio Torres que Vovó morrera de eclampsia.
Vovô sofreu muito juntamente com os filhos. O mais velho tinha 13 anos e o menor, um ano. O velório durou toda a noite e todo o dia seguinte, pois chovia muito e tiveram que esperar a chuva passar. Mamãe e tia Iracema escondiam-se para falar sobre a mãe e chorar. Não queriam ser consoladas. Continuaram morando na casa que chamamos de "casa do Vovô". Tia Persiliana (ou Prisciliana?) ia todos os dias olhar a casa, os sobrinhos e o irmão. Ela também era casada, com muitos filhos. Sugeriu ao Vovô que mudasse para perto dela, para ficar mais fácil, porque quando ele viajava a casa virava um caos. Foram então morar numa casa quase em frente a dela, hoje Rua Getúlio Vargas, uma casa de esquina. Ali ficaram por muito tempo. Mamãe contava que brincava muito com a prima Marieta e que iam rezar o terço com a tia na Igreja. Elas rezavam no mesmo terço, segurando uma de cada lado. Ficavam admiradas porque o terço dos adultos não andava depressa e o delas, pelo contrário, andava bem rápido...
Vovó Alcida morreu em janeiro de 1912 e em maio do mesmo ano, Mamãe foi escolhida para coroar a imagem de Nossa Senhora. Tia Persiliana se encarregou de convencer o Vovô. De início ele se opôs, mas depois resolveu escrever uma poesia para Mamãe coroar. Ela tinha então 10 anos. Certa vez, perguntei a Mamãe porque a Vovó Mariana não ficou com Vovô e os filhos para ajudá-lo. Ela disse que ela era velha, logo adoeceu e faleceu amargurada com a morte da filha.
Mamãe e tia Iracema cuidavam dos irmãos menores, principalmente os três últimos, Moge, Fão e Anterinho. Davam banho, serviam as refeições e ensinavam a rezar. Tio Fão dizia "- Foi a mana que me ensinou a rezar". Mamãe nunca falou de sua primeira comunhão. Mas nunca esqueceu de sua mãe. Relembrava com muita dor e saudade da mãe que perdera tão cedo.  Muitas vezes escutei dela: “- Quando eu morrer vou encontrar com a Mamãe."

4. Os estudos e a tuberculose
Tia Iracema foi para São João D’El Rei, em casa de uma irmã do Vovô (tia Maria) para estudar. Mamãe ficou em Bambuí e ajudava a madrasta, Vovó Maria, em tudo. Mamãe discretamente dizia que vez ou outra haviam conflitos entre as duas. Tia Dedê que morava perto foi quem acompanhou Mamãe e lhe deu orientações sobre as transformações próprias da adolescência. Quando tia Iracema voltou de São João D’El Rei as coisas mudaram, pois se posicionava firmemente ao lado da irmã.
Foi por essa época que Mamãe foi estudar no Colégio Providência em Mariana. Lá ficou um ou dois anos sem voltar para Bambuí, já que a situação financeira do Vovô não era boa. Procurava ajudar as irmãs e com elas aprendeu a ser uma mulher de fibra e de fé em Deus. Foi no colégio também que aprendeu a fazer flores, habilidade que depois usou para ajudar nos gastos de casa.
No Colégio de Mariana foi admitida na "Pia União das Filhas de Maria" (Associação de Leigas Católicas) no dia 12 de Outubro de 1919. Em um santinho encontrei: "Lembrança da consagração de Maria Augusta Torres a Maria Imaculada. Reze por sua amiga Corina." Esta era a diretora da Associação. Quando toco no livro da Mamãe, com a capa gasta pelo uso e as folhas amareladas pelo tempo me emociono. Beijo com carinho e devoção os sinais das mãos de minha querida mãe. Faço nele a novena da Imaculada Conceição que rezei com ela por muitos anos.
Tem uma história que não sei se é verdadeira. Ela teria ido para Luz, a chamado de Dom Manuel Nunes Coelho, para ajudá-lo a elaborar os estatutos das Filhas de Maria ou de uma congregação religiosa, contra a vontade do pai. Vovô mandou um dos irmãos buscá-la. Nunca escutei da Mamãe uma palavra a respeito.
Mariana era uma cidade com temperaturas muito baixas, Era tanto que Mamãe acabou contraindo a tuberculose. Tio Totônio estudava em Belo Horizonte. Vovô então pediu que ele fosse a Mariana buscá-la, levá-la ao médico e depois para Bambui. Constatou-se a doença e ela foi então submetida a repouso e alimentação pra combatê-la. Vovô e os irmãos se desdobravam pra correr atrás de tudo que falassem ser bom para ela. Até água de bananeira tomou. Chorava ao comer, com o vovô ao lado fiscalizando. Dormia de janela aberta. Na porta do quarto dormia o tio Lico para protegê-la. E ninguém podia entrar em contato com ela para evitar a contaminação, além de outras medidas de higiene recomendadas pelos médicos de então.
Nessa época ela tinha um irmão com cerca de dois anos de idade. Era proibido chegar perto da Mamãe. Ele queria fazê-lo e mamãe o espantava balançando os pés, vestidos com meias pretas...Chamava-se Jubal e morreu num acidente no monjolo.
O tratamento da tuberculose durou um ano. Mamãe tinha então 18 anos.

5. A experiência como "Filha da Caridade"
Havia uma tia de Mamãe que era Filha da Caridade (irmãs vicentinas). Mamãe foi para o Rio de Janeiro, no Santuário do Matoso onde fez o postulado e deu início ao noviciado naquela congregação religiosa. Vovô foi levá-la, com pesar, pois ela iria fazer falta em casa na ajuda que dava a Vovó Maria. Era o ano de 1920.
Parece que Vovô via que ela não tinha vocação religiosa. Ela morava no seminário, que se situava no Matoso, na Tijuca à Rua Dr. Santamini, 333. Mamãe dizia Santa Amélia. Ficou lá por seis anos. Quando fui ser religiosa, encontrei lá uma irmã velhinha que dizia lembrar-se de Mamãe de costas olhando para a cruz chorando. Lá ela ficou até 1926, quando as gêmeas - tia Dadá e tia Didi - nasceram. Vovô escreveu contando do nascimento das irmãs e pediu sugestão para os nomes. Mamãe então sugeriu que fosse dado para uma delas o nome da Vovó Alcida. Ele aceitou e colocou o nome na outra de Alcira. E Mamãe ficou morrendo de vontade de conhecer as irmãs recém nascidas. Era apaixonada pelos irmãos. Nasceram no dia 11 de setembro de 1926. Quando foi para o Rio já tinham nascido mais três irmãos: Mozart, Luiza e Wilson.
Nos tempos que Mamãe passou no Rio tio Totônio estudava medicina e fazia estágio na Santa Casa daquela cidade. Vez ou outra Mamãe se encontrava com ele nos corredores, já que com freqüência acompanhava uma irmã ao hospital.
Mamãe deve ter rezado e pensado muito, procurado o confessor e conversado com Irmã Natália, que era a sua tia Laurinda. Em março decidiu sair da congregação. Com certeza deve ter falado da sua decisão com o Vovô, que autorizou tio Totônio buscá-la e trazê-la para Bambuí. Ela ia a Santa Casa e não o encontrava. Deixou então dois bilhetes para ele. Transcrevo o de 26/03/1926:
“Totônio,
Como já te escrevi ante-hontem e acho que a carta não chegou ahi faço-o de novo. Peço-te vir aqui na mesma hora que receberes esta. Pode vir imediatamente pois é com o consentimento da bondosa Directora, sim!
Eu te espero sem falta.
Recado de tua irmã extremosa, Pepita”
Ela então voltou da comunidade e foi o braço direito da Vovó Maria. Vieram mais duas filhas. As irmãs de Mamãe a chamavam de Pitinha. Tinham todos muito carinho por ela.

6. A professora e a vida religiosa.
Mais tarde foi convidada a dar aulas. Foi bem sucedida no exercício do magistério. Foi convidada pelo professor Mário Rebelo que era o diretor do Grupo Escolar José Alzamora. Muito elogiada, todos a queriam como professora dos filhos. Didice guardou um caderno dela com planos de aulas para crianças de primeiro ano. Em dois exemplares do "Minas Gerais" encontramos a nomeação dela.
Ajudou o vigário a fundar na paróquia a Pia União das Filhas de Maria, onde foi diretora. Ao ser introduzida em Bambuí a visita domiciliar de Nossa Senhora das Vitórias era chamada a armar o altarzinho para receber a imagem.
Mamãe ia todos os dias à missa. Tinha uma grande amiga: Otília Nunes. Conversavam sobre tudo e foram amigas até depois que Mamãe se casou. Otília era solteira e cuidava dos sobrinhos que perderam a mãe. Quando se encontrava com Mamãe se emocionava. Ela a chamava de "Tilinha".
Mamãe continuava a lecionar com sucesso. 

7. O encontro com o Papai
Nas idas e voltas a Igreja com Otília elas se encontravam sempre com um jovem moreno que era amigo dos irmãos de Mamãe: Zévis. Certo dia Papai pediu a Otília que dissesse à Mamãe que queria namorar com ela e Mamãe aceitou. Só que a Otília tinha que ficar junto e ir com ela até em casa para o Vovô não criar objeções. Os pais de Zévis - José Vicente de Souza e Germana Maria de Souza - eram compadres do Vovô. Tio Nelson, irmão do Papai, era afilhado do Vovô Antero. Mamãe gostou logo do Papai. Era moço religioso, vicentino, que fazia visita ao Santíssimo Sacramento todas as tardes depois do serviço. Era contador. Vovô permitiu que o pretendente fosse lá para namorar, mas Mamãe ia passar a roupa ou levar as crianças para a cama, rezar com elas e conversar. E o namorado ficava conversando com o Vovô e Vovó Maria. Foi assim o namoro deles. Até que chegou o dia em que o Papai criou coragem e pediu Mamãe em casamento ao Vovô Antero. Ele ficou calado e não disse nada; Papai ficou aguardando o consentimento do Vovô para ficar noivo. Encontrava com Mamãe, acompanhada de Otília, ia à casa dela, mas nada acontecia.
Antes de o Papai pedir Mamãe em casamento, ela chegou perto da Vovó Maria e disse: “- Maria, se eu quiser casar, o Papai deixa?" Ela respondeu: "- Não estou vendo ninguém querendo casar com você!" Mamãe respondeu: "- Mas eu estou..." Vovó então perguntou quem era. "- É o Zévis da Germana", respondeu. Vovó completou dizendo: "- Seu pai dizia que quem servia para casar com a Iracema era o Rômulo ou o Zévis. O Rômulo se casou com sua irmã. Ele deixa. É uma pessoa muito boa. E ele gosta do Zévis.” Foi aí que o Papai falou com o Vovô.
Nesse meio tempo tio Anterinho formou-se em Direito, em Belo Horizonte e voltou para Bambuí. Ficava o dia inteiro com Mamãe, conversando e interrogando-a e percebeu que estava triste. Ele perguntou se ela era feliz, se não tinha namorado, se era aquilo que ela realmente queria. Mamãe contava que eles se sentavam na porta da cozinha e ficavam conversando; então ela abriu o coração e contou do pedido do Papai e que o Vovô não havia dado resposta até aquele dia; ela estava rezando, mas o Vovô não se manifestava. O Tio a abraçou, prometeu falar com o Vovô e já voltou com o consentimento. À noite quando o Papai foi fazer a visita, na despedida, ela o acompanhou até a porta contando da permissão do Pai e que havia sido o tio Anterinho que intercedeu junto ao Vovô.
Papai, mesmo antes do namoro e depois do casamento, era muito amigo dos irmãos dela, principalmente dos filhos da Vovó Alcida. Tem cartas deles, fotos e troca de favores. Há de se ver pela atitude do tio Anterinho em ajudá-los. Papai, tinha que marcar a data para entregar a aliança a Mamãe.
Na semana santa de 1933, tio Anterinho foi a Belo Horizonte. Tinha namorada lá. No sábado de aleluia houve um baile. Nesse dia, 15 de abril de 1933, no quarto do hotel onde se hospedava, deu um tiro no ouvido. Morreu na hora e não deixou nada escrito. Foi sepultado lá mesmo. Ela contava que foi um choque para todos. Vovô ficou arrasado. O Tio estava com 23 anos, formado, com escritório em Belo Horizonte, em Bambuí e em Formiga, junto com o Vovô.
Então o noivado voltou a estaca zero. Ninguém mais tocava no assunto. Mamãe, como professora, foi comprando o enxoval e bordando alguma coisa. Tudo muito simples.
Encontrei uma caderneta da Mamãe, com poucas folhas. Na primeira página há uma foto do Papai com a seguinte anotação: “O Zévis me deu a aliança (meio à força) no dia 1º de setembro de 1933, às 08h00 da noite, na porta da casa de meu Pai. Senti-me feliz deveras naquele momento, um dos mais gratos da minha vida. Graças a Deus.”
Logo foi marcado o casamento para o dia 27 de novembro do mesmo ano e comunicaram ao Vovô. Quando foi se aproximando a data do casamento Vovô pediu a Vovó Maria que providenciasse o que faltava no enxoval. Ela o fez e comprou uma máquina de costura para a Mamãe. De marca Singer, a mesma que é da Tetela.
Chegado o dia, Vovô Antero foi para Formiga, dizendo que tinha uma audiência. Não esteve presente ao casamento. Só voltou no dia seguinte... Eles se casaram durante a missa. Mamãe estava com o uniforme das Filhas de Maria; toda a agremiação estava presente e também os irmãos dela e os dois irmãos do Papai - tio Nelson e tia Maria Augusta - e Dindinha - como chamávamos a Vovó Germana. Ela e outras pessoas chamavam o Papai de Juca. Foi de manhã. Mamãe contava que o tio Totônio insistia para que ela usasse, ao menos naquele dia, pó de arroz. Mas ela não aceitou. Vovó Maria foi ao casamento. Depois foram todos tomar café. Vovó fez uma mesa de bolos e biscoitos. Todos foram embora e eles ficaram lá. Mamãe foi arrumar a casa, cuidar das irmãs menores e o dia passou. À noitinha foram para a casa da Dindinha. Mamãe contava que no outro dia cedo estavam todas lá, - Dadá, Didi e Inês - com uma flor na mão para ela. Foram ver a Mamãe.
Depois de alguns meses não deu certo o relacionamento da Mamãe com a sogra. Ela perdera o esposo, o Vovô Vicente, assassinado, e ficou com os três filhos para criar. Ele era delegado. Não sei como viveram financeiramente. Ela tinha ciúmes do filho com a nora. Foram morar em frente à casa do Vovô.
Encontrei esse escrito da Mamãe: "No dia 1º de abril de 1934 recebi a primeira visita de Nossa Senhora das Vitórias que saiu de nossa casa no dia 30 do mesmo mês. Foi na casa do compadre Antonino, em frente à casa do meu Pai. Eu tinha então 5 meses de  casada. Ó Maria, - concebida sem pecado - minha boa mãe, sê em tudo e sempre minha mãe!"
Numa caderneta encontrei também outras anotações:
"Zévis,
Que o glorioso Patriarca São José, seja o teu protetor em todos os dias da tua vida tão amada e tão preciosa para mim. São os ardentes votos que a Ele dirige o coração da tua, só tua Pepita." (1933)
“Zévis,
Esta caderneta, insignificante lembrança de um coraçãozinho tão escravo, servirá para serem assentadas as notas íntimas, doces ou amargas, da vida comum que agora iniciamos. Que o S.S. Corações de Jesus e Maria nos abençoe de tal maneira que mesmo nas amarguras encontremos a suavidade precisa para levarmos a nossa vida segundo os desejos do céu.”
Depois de casado, Papai foi convidado para trabalhar na prefeitura.  Não sei se foi por Tio Tonico ou Tio Simphrônio que foram prefeitos em Bambuí. Não sei se houve concurso ou não. Sei que exercia o cargo de chefe do serviço da fazenda do município de Bambuí, ou seja, tesoureiro. A carteira de trabalho dele está com o Fernando.

8. O nascimento das primeiras filhas
Mamãe continuou como professora. Saíram da casa em frente à do Vovô e foram para uma casa de esquina na Praça Antônio Carlos, próxima ao local onde muitos anos depois foi construído o Santuário São Sebastião. Iam todos os dias a casa do Vovô.
Em janeiro de 1934 Mamãe ficou grávida pela primeira vez. Em 05 de setembro de 1934 nasceu a Maria Célia, na casa do Vovô. Não sei o motivo. Tio Totônio e Vovó Maria ajudaram no parto. Depois em 15 de agosto de 1936 nasceu Maria Alice. "Foi o dia da inauguração da luz elétrica na cidade, com um foguetório", dizia Mamãe.

9. A morte do Vovô Antero.
Nesse meio tempo Vovô Antero teve uma dor no peito que foi diagnosticada como "angina do peito".  Ficou de repouso por um tempo. Mamãe e Papai iam visitá-lo toda tarde. Mamãe contava que ele sentava a Didice na mesa para brincar com ela e a chamava de "boticaba do vovô".
Uma tarde tio Totônio chegou chamando-o para sair com ele e tia Juracy para visitar os pais dela. Papai ajudou a calçar a botina e o Tio o paletó. Vovô disse “- Maria, me dê um lenço com perfume que estou com cheiro de cadáver". Vovó se zangou e eles saíram. Mamãe e Papai ficaram mais um pouco e foram embora.  Nessa ocasião Mamãe já estava grávida de novo. Pelas 22h00min, o Tio foi chamado depressa porque o Vovô estava mal. Antes que ele fizesse alguma coisa, Vovô foi caindo, tio Totônio, soltou a seringa, abraçou-o e ele faleceu. Era o dia 10 de novembro de 1937.
O doce sorriso da Pepita.

10. Nascimento dos outros filhos
Em 14 de março de 1938 eu nasci, às 19h00, na casa do Vovô. Vovó Maria pediu a Mamãe que fosse pra casa dela porque ficaria mais fácil para ela atender Mamãe e olhar a casa e os filhos. Tia Jacinta, a caçula estava com 5 anos. Como as outras filhas, o bebê recebeu o nome de "Maria", Maria Lígia.
Em 29 de agosto de 1939, dia que estourou a Segunda Guerra Mundial, nasceu o Fernando.
Em 10 de maio de 1941 nasceu o Hermano, em 30 de novembro de 1942 o José Nelson e finalmente em 23 de junho de 1944 nasceu o caçula, Giovani, o "cachorrinho da Mamãe", como ela carinhosamente o chamava. Eles quatro nasceram na "casa de baixo", na antiga Rua do Comércio, hoje Rua dos Expedicionários. Moramos nesse endereço mais ou menos 10 anos.
(...) Falo que a meta da vida dela era buscar o reino de Deus. E quantas vezes nos dizia, quando por algum motivo ficávamos reclamando: "Buscai primeiro o Reino de Deus e sua justiça e tudo o mais vos será acrescentado.” 

Carta de Ludimira sobre a Catequista Pepita


Ensaiadas pela Pepita, um grupo de crianças
-entre elas Mariel- coroam Nossa Senhora.
Cara Irmã,

Hoje no curso, quando a senhora perguntou quem poderia afirmar que teve uma verdadeira catequista, lembrei-me de minha catequista.
E quando a senhora falava do verdadeiro sentido da catequese, da sua importância e necessidade e de como deve ser feita, eu lembrei-me de uma pessoa que viveu esse perfil fielmente.
Na família de minha mãe quem preparava as crianças para a 1ª comunhão era a minha avó. Esta minha avó, que tinha o apelido de Pepita, morava em Bambuí. Todos os primos, acima de mim, foram preparados por ela para a 1ª Eucaristia. Infelizmente eu não fui preparada diretamente por ela, pois minha avó já estava mais velha e era difícil para ela. Minha tia foi minha catequista.
Quando chegava a idade adequada, meus primos iam para a casa da minha avó. Apesar de nenhum morar em Bambuí, eles iam para lá em dezembro e ficavam até fevereiro se preparando. Era como um super intensivo de catequese. E havia aquelas perguntas que se decorava do livro “Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã".
A senhora pode perguntar como pode ser feita uma catequese em tão pouco tempo. Será que estavam realmente preparados para receber Jesus Eucarístico? Sim, Irmã, porque na verdade era apenas uma finalização do que se vivia naquela casa.
Vou explicar melhor. Vivia-se Jesus naquele lar. Ele era o centro de tudo.
O Natal, por exemplo, era comemorado, ou melhor, vivido de uma forma única. Logo que se iniciavam as férias os netos iam todos para Bambui. Era maravilhoso estarmos lá.
Então acompanhávamos a preparação para o Natal. A minha avó tinha o costume de ir enfeitando a casa aos poucos, de acordo com os domingos do Advento. Ou seja, no primeiro domingo ela colocava uma coroa na porta de entrada da casa, no segundo começava a armar o presépio e assim por diante. Ela vivia a espera da chegada do Menino Deus. E nós acompanhávamos isso com alegria.
O dia de natal era muito festivo. Havia sempre músicas de natal tocando o dia inteiro. À noite, íamos para a "missa do galo" e, ao voltarmos, acontecia o momento mais maravilhoso para nós: hora de colocarmos o Menino Jesus no presépio. Ao montar o presépio, a minha avó não colocava a imagem de Jesus. Ela era apenas colocada na noite de natal.
Tinha-se um cortejo dos netos onde uma pessoa levava Jesus. Aí está a coisa interessante.
Quem levava Jesus, era aquela pessoa da família que havia recebido algum sacramento naquele ano, foi crismada ou fez a primeira comunhão. Se havia nascido algum netinho os pais com o bebê levavam Jesus. Ou seja, desde pequenos aprendíamos a importância dos sacramentos e nos sentíamos importantes também ao recebê-los. Cantávamos músicas natalinas e gritávamos vivas a Jesus. Tínhamos o momento de oração onde agradecíamos pelo ano que passou. Antes de deitar colocávamos nossos sapatos em baixo do presépio. Não fomos criados acreditando em Papai Noel. Sabíamos que o presente vinha do Menino Jesus. Ele é quem dava condições para nossos pais trabalharem e dar presentes.
A Páscoa era igualmente festejada. Havia no Natal, na Páscoa e na 1ª comunhão um detalhe interessante: era apenas nessas ocasiões que minha avó fazia "amêndoas". Era o alimento que simbolizava para nós algum acontecimento especial de nossa fé.
Não era apenas nas datas festivas que se vivia Jesus. Todas as noites rezávamos o terço. Muitos não gostavam e os pequenos dormiam durante a oração e ela dizia que eles dormiram no colo de Jesus. Na adolescência só saíamos depois do terço.
Não é uma catequese? É claro que minha avó tinha uma vida na Igreja: era catequista, ajudava nas missas, lavava os paramentos e os "panos" da liturgia, era Filha de Maria, e fazia as hóstias para a paróquia. Mas a vivência da fé no dia-a-dia, nas pequenas coisas é que foi a nossa catequese. Desde que nascemos vimos a vovó praticando a sua fé. O atendimento às pessoas, as orações, as imagens, as coroações de Nossa Senhora. Sempre pedíamos para ela contar histórias antes de dormirmos. Foi em uma dessas que me impressionei com um certo menino que foi encarregado de transportar Jesus sacramentado e foi morto, mas não desgrudou as hóstias de seu peito.  Mais tarde descobri que esse menino que me impressionou era o pequeno São Tarcísio.
Se fosse contar tudo que aprendi sobre Jesus e a Igreja nas minhas férias na "casa da Vovó", daria um livro.
Sei apenas que minha avó colocava sua fé em cada coisa que fazia e dizia. Tinha seus defeitos, escrupulosa demais e tinha medo que pecássemos quando demorávamos no banho.
Acho que ser catequista é isto. Quero ser catequista nas pequenas coisas e passar tudo para meus filhos e netos...
Um grande abraço,
Ludi

Ludimira de Souza Collares é filha da Maria Célia, filha mais velha da tia Pepita

Cantinho da memória 2: NISO TORRES


Maria Lúcia Torres


 
Niso comemora seus 80 anos com manos, cunhadas e amigas.

Niso Torres nasceu em 1903; faria 110 anos. Aos oito anos perdeu sua mãe, mas foi acolhido pelas tias, primos e primas, a quem dedicou por toda a vida profundo afeto. Presciliana, tia paterna, Dedê e Arquidâmia, tia e prima maternas, assumiram o cuidado das crianças órfãs, até as segundas núpcias do pai viúvo. Em 1913, aos 10 anos de idade, ingressou na escola do Professor José Alzamora e conquistou o diploma da formação primária em 1917. Em 1919 seguiu para Ouro Preto, ali permanecendo até completar a sua formação preparatória. Matriculou-se em 1924 na Faculdade de Direito em Belo Horizonte, da qual sairia advogado no dia 25 de dezembro de 1928.
 Niso era filho de Antero Torres e de Alcida Augusta Torres e cresceu num ambiente social permeado pelas disputas familiares, entre famílias que ele indiscriminadamente estimava. Imagino que pela admiração que sentia pelo pai infundiu-se nele a aspiração de tornar-se advogado. Ele amava a sua terra e como seu pai manteve durante anos, nas lides de sua vida profissional, o hábito de vasculhar o espaço amplo do município, ultrapassando suas fronteiras, em busca de informações sobre as origens da conformação fundiária e da divisão das glebas no território da freguesia de Santana do Bambuí. E tanto ele como o pai deixaram fartas e minuciosas anotações sobre suas pesquisas de campo nas visitas ao meio rural Assim, ao longo do tempo, ele foi estreitando os laços de um convívio amistoso com uma parcela grande dos habitantes da região do alto São Francisco; e como seu pai alinhava ao exercício da profissão a ardorosa dedicação à militância política.      
O distrito de Medeiros foi um dos locais onde Niso exerceu suas atividades politicas e profissionais. A foto retrata da direita para a esquerda: Jerônimo Leite de Faria, Joaquim Calixto, Juca Leandro, Niso, Ibraim de Faria Leite, Dr. José Agnaldo, Plínio Malfitano, Chicrala Miguel Elias, Geraldo Mendes.

A nós, seus filhos, não nos era transmitida a fórmula e a origem dos conflitos familiares e políticos subjacentes ao espaço público que compartilhávamos com a família e a sociedade. Mas, convivendo com aquele homem ardoroso, que prezava com vigor as normas do bem viver em sociedade, nós estávamos sendo educados por um humanista, um homem rigorosamente público. Um homem que, imbuído de ideais de justiça, paz e harmonia, engenhosamente enfrentou e combateu - armado de afeto, respeito e autoridade - a trama dos conflitos sociais, regidos pelo sistema coronelista, vigente no país até 1930, e que mantinha o espaço público ocupado pelas lealdades da vida privada.
Nos tempos de sua formação em Belo Horizonte residiu na casa da tia Chica, irmã da Quinha, bambuienses da família Bahia. Um dia antes da formatura, Niso conversou com Ozório e Quinha, pai e mãe de Alda, pedindo-a em casamento; nessa data anotou em seu diário:
Os noivos Niso e Alda no parque municipal/Bh em 1928.


Meu primeiro dia de noivo. Fomos juntos à missa dos bacharelandos e juntos voltamos. À noite rumamos para a Escola. Eu estive vivamente emocionado nesse dia. Colei grau e o amor me sorriu, numa linda promessa de ventura.[1] Estado de espírito que ele e Alda souberam manter pela vida afora, apesar dos sofrimentos, apertos e trabalhos que, afinal, não lhes faltaram.  
Nos dez anos vividos entre Ouro Preto e Belo Horizonte, ele fundou os alicerces de sua vida profissional que respaldados no prestígio e sabedoria do pai contribuíram para a formação de sua personalidade de cidadão. No Brasil, os anos de 1920 e 1930 foram marcados por agitações sociais e políticas em defesa de mudanças que favorecessem a modernização e a democratização da sociedade e do Estado que deveria planejar o desenvolvimento e a ampliação da cidadania, despertando no indivíduo o interesse pelo bem comum. Esse movimento, coroado pela Constituição de 1934, de curta duração, foi duramente abalado pelo golpe do Estado Novo em1937; contudo, vigorosamente preservado por segmentos progressistas que ocupavam postos estratégicos no governo, foi consagrado pela Constituição de 1946 e, em suas grandes linhas, vigorou até 1964. Formado nesse ambiente, ele conviveu com muitas das lideranças que em Minas, a partir de 1930, assumiram a direção do Estado e junto delas, ao longo de sua vida pública, defendeu com lealdade a aplicação daqueles princípios democráticos consagrados pela Constituição. No seu discurso de posse na Câmara de vereadores, para a qual foi eleito presidente, provavelmente em 1936, ele considera:
Niso discursa em cerimônia civica.
“... Há cinco anos atrás, muito outro era o panorama. Esfacelado e dividido, o Município se debatia numa luta inglória. Avassalado pela politicagem, cheio de ódios, de competições e perseguições pessoais, era a sua situação objeto da crítica dos vizinhos e de acres censuras de toda parte... Pacificar o Município parecia tarefa humanamente impossível, mas seria fácil governar sem ódios. Inaugurou-se, então, o regime da separação da política e da administração. (...) A administração deve existir para promover o bem coletivo, para distribuir benefícios e encargos a todos, sem consideração aos compromissos ou idéias políticas do indivíduo. (...) Foi compreendendo estes propósitos e aplaudindo estas atitudes, que os ânimos serenaram, para, numa comovente unanimidade, dedicarem-se todos ao bem comum.
 Niso viveu intensamente sua vida pública e profissional e, junto com Alda, construiu um lar saudável, ancorado em sólidos afetos e harmoniosa convivência. Deixaram enorme descendência; criaram onze filhos, viram nascer e crescer netos e bisnetos, em levas permanentes. Queriam todos juntos deles; mas, como a trama da vida nega essa possibilidade, o recurso sempre utilizado foi a correspondência. Cartas, muitas cartas para seus filhotes e netos queridos. Em 1964, o golpe militar colocou a múltipla existência de partidos políticos sob controle, em nome da preservação da segurança nacional. Rompe-se o princípio liberal-comunitarista que, de um modo geral, vigorara desde os anos 1930, princípios que Niso defendeu desde sua mocidade e que lhe eram caros. Interceptado o movimento de uma sociedade que seguia o seu curso pluralista, imposta regra única e excludente, contrária à sua longa defesa da democracia, Niso se calou. Não era mais um jovem, muitos companheiros da sua geração haviam dispersado e ele amargou sozinho, cada vez mais só e mais calado os longos anos da ditadura militar. Morreu em 1988, ano da promulgação da Constituição Cidadã, cujos trabalhos não teve força nem entusiasmo para acompanhar.
O velho bivô Niso recebe o carinho de sua bisneta Carolina.
Desde o agravamento de sua doença, Alda, ainda no vigor de seus 70 anos, deu asas à sua poética numa manifestação de surpreendente criatividade; e valendo-se dessa linguagem empunhou a bandeira que ele mantivera erguida, sustentando em muitos de seus versos aquele símbolo do espírito público que os dois defenderam ao longo de suas vidas.           



[1] Livro de registros diários escrito por Niso em 1928, para registrar o convívio, o namoro e o noivado com Alda; dia 25/ 12/ 1928.

Carta de um pai aflito por não saber o endereço da filha perseguida pela ditadura civil militar


Nos duros tempos da ditadura Maria Lúcia foi para
o chapadão da serra da canastra se encontrar com
Nizo e Alda. Fazem parte do grupo Edna e Júnia.

Minha filhinha,
Deus a abençoe, guarde e proteja.
Vou aproveitar essa folga de manhã clara e fresca, pelo menos aqui no escritório, porque lá fora o sol deve estar abrasador, para começar a lhe escrever. Dalmo foi segunda-feira a BH se encontrar com o general comandante da autarquia a que os telefones são subordinados cavar interurbano para nós e levar Ieda e Cláudia que será vacinada contra a pólio e, de volta terça-feira, trouxe a Quinha que veio passar aqui o aniversário da Dininha, que transcorre hoje e, como não tinha mais lugar no carro, Luiza ficou e veio ontem de noite trazendo sua carta, mandada pela Ione.
Quando Mamãe morreu e seis meses depois a vó Mariana, sua mãe, Papai trouxe de Bom Despacho a tia Maria Clara, viúva de um irmão de vó Maria Jacinta, para nos fazer companhia. Era roceira autêntica, apegada aos velhos costumes da roça mineira, mas boa e santa, que sabia suportar com paciência as loucas traquinagens desses nove diabinhos que devíamos ser. Quando havia excesso, ela vinha atrás da “Priciliana” a enérgica e boa tia, que sabia manter a ordem. Naquele tempo morava conosco a Arquidâmia, filha da tia Dedê, mãe da Angelina e já era moça ponderada e séria, carinhosa e boa, que prestava à tia Maria Clara auxílio inestimável e ajudava agente a suportar os maus pedaços.
Esse passeio pelo passado veio a propósito de como tia Maria Clara me falava quando me via a um canto quieto, meditando sobre algum desengano ou planejando alguma traquinagem. “Ocê hoje está com o bicho carpinteiro”. Ontem, depois de ler sua carta fiquei com o “bicho carpinteiro”, procurando adivinhar em que rua e número será sua casa ou, qual será seu serviço, o local onde o executa, quem será seu patrão e quem serão os seus colegas, quanto você ganha, se dá ou não para a sua subsistência; onde você ficou e como ficou depois que Zezé deu o pira; onde era a fábrica em que você trabalhava e o que fazia lá? E o “bicho carpinteiro” continua a trabalhar.
(...) Pelo que você diz a mobília de vocês está muito reduzida. Mande-me orçamento do que precisa para guarnecer a casa e eu vou dar jeito de arranjar dinheiro para lhe mandar. Está difícil, mas hei de dar um jeito.
Só parando. Deus a abençoe, guarde e proteja.

                                                Niso

                                             26/04/1973

Cantinho da memória 3: O PROFESSOR SALATHIEL TORRES


Leitura matinal do jornal: Salatiel
e Candinha.
O Prof. Salathiel Torres nasceu em Bambuí, MG, em 22 de dezembro de 1904.
Em 1917, mudou-se para Belo Horizonte para continuar seus estudos no Colégio Arnaldo.
Em 1920 foi para Ouro Preto para concluir o curso científico no Colégio Alfredo Baeta, onde se tornou regente de alunos, por apoio do Dr. Baeta, para ajudá-lo nos estudos. Em seguida, passou pelo curso anexo, necessário para ingressar na Escola de Minas. Já estudando na Escola de Minas, tornou-se professor de matemática no Colégio Baeta. Mais tarde foi lecionar matemática, também, no colégio Arquidiocesano. Em 1929, formou-se em engenharia e, neste ano, ainda esteve trabalhando nos serviços de melhoramentos urbanos de Ouro Preto. Neste mesmo ano tornou-se Professor da Escola de Minas e em 1931 passou a professor catedrático interino da cadeira de estabilidade das construções e concreto armado, passando a professor efetivo em 1935. Eleito vereador em Ouro Preto em 1936, perde o mandato em 1937, pela cassação imposta às representações legislativas em todo o território nacional, com a implantação do Estado Novo. De 1947 a 1956, foi diretor da Escola de Minas. Nesta época já acreditando na concretização da Universidade Federal de Ouro Preto ou prevendo o gigante em que ela se transformaria, adquiriu o terreno onde hoje a UFOP está instalada. E foi um dos seus criadores, no início da década de 60, chegando a ocupar interinamente a reitoria da universidade no início dos anos 70. Foi um idealizador e um dos fundadores da Fundação Gorceix. Também foi um dos fundadores da Escola Técnica Federal de Ouro Preto, hoje CEFET. Era impressionante o seu gosto e sua vontade de ensinar e o prazer que tinha em ver alunos aprenderem com ele.

O Engº Salatiel, responsável pelo projeto da ponte sobre a represa do rio samburá,
com o prefeito de Bambuí, simphronio Torres, Os manos Nizo e Lico, na data de inauguração da ponte.

Em 1930, o Prof. Salathiel Torres casou-se com a Senhora Cândida Cruz. Em 1931 nasceu o primeiro filho, Duílio. Em 1934 nasceu Alcida e em 1935 nasceu o terceiro e último filho, Maurílio. Duílio e Alcida deram ao casal Salathiel e Candinha, 11 netos. Maurílio não se casou.

Salatiel comemora seus 70 anos com os manos
Fão, Moge, Nizo e Totonho.
O Prof. Salathiel era um homem culto que dominava cinco línguas, lia muito, devorava diariamente três jornais de onde retirava um divertimento que lhe dava grande prazer, resolvendo as “palavras cruzadas”. Tinha, também, um divertimento exótico, que lhe permitia boas gargalhadas, quando atacava um livro de teoremas de geometria a demonstrar. Os que o viam caminhando pelas ruas de Ouro Preto, nunca o viram sem paletó e gravata. Mas, na sua simplicidade, tinha sempre boas palavras em um rosto sereno, gostava de declamar poemas, e era um homem religioso – podia ser visto, sistematicamente, subindo o beco do Carmo, aos domingos pela manhã, de braços dados com a D. Candinha, para assistir a missa das dez na Igreja do Carmo, de cuja Irmandade foi irmão. Por estar sempre presente em procissões, vestindo a opa da irmandade do Carmo ou da irmandade do Santíssimo, da Matriz do Pilar, ganhou o carinhoso apelido de Bispo, pelos alunos da Escola de Minas. Foi pessoa muito humana e caridosa. Por sua casa, em Ouro Preto, passaram muitos de seus irmãos, sobrinhos e netos, com o propósito de estudos e ainda hoje muitos deles têm suas histórias de passagem pela casa do tio Salathiel ( ou do vô Tiel) para contar. Aliás, sua presença marcante nesta vida, faz com que todos que o cercaram - filhos, netos, genro, nora, sobrinhos, amigos e alunos – tenham sempre histórias suas para contar.

Professor Salatiel, uma lenda.
Naldo Torres
Professor salathiel Torres em reunião para instalação da fundação Gorceix
com Engº Lucas Lopes, Engº Amaro Lanari e Cel. Jovelino Rabelo.
(Foto gentilmente cedida fela fundação Gorceix)


Quando o conheci, era ainda criança, mas já o tinha como uma lenda. Um acontecimento para a família, ainda majoritariamente reunida na pequena Bambuí, a sua chegada, acompanhado de toda família. Uma grande festa, devidamente registrada para a posteridade pela infalível câmera do Totônio.

Morava longe. Como era longe a Ouro Preto daqueles tempos! Grande, sério, austero; um líder. Os mais jovens não compreendiam quanto era grandiosa aquela tenda que abrigou irmãos e sobrinhos, - mais de uma dezena, mais de vinte? - que sombreou os estudos, a educação de todos, em Mariana e em Ouro Preto.

Alguns moraram uns tempos em sua casa. Somente pelo auxílio e pela influência daquele filho de Antero duas alentadas gerações puderam se educar e se instruir mais do que lhes permitiria a nossa matriz – Bambuí - e os parcos recursos do pai e dos irmãos. Muitos irmãos mais novos e filhos de todos os irmãos mais velhos passaram por aquela casa da Rua Direita, encaminhados pelo velho Salatiel para os colégios de Mariana, Ouro Preto e até Cachoeira do Campo.

Sou um desses anônimos Torres que por lá passaram, que ali lapidaram seus conhecimentos, seu viver, seu caráter enfim, sempre sob o olhar atento, o conselho meio escondido, os recados transmitidos sorrateiramente através da alegria e verborragia da Candinha. Naquela época não víamos isso, mas hoje sabemos que nosso caminho estava sempre iluminado por aquela figura, com seu farol clareando caminhos; não só dos parentes, mas de todos os discípulos que desfilaram diante do professor, do diretor, do político. O visionário que implantou obras educativas, quase anonimamente, sem se vangloriar disso; e que persistem até hoje.

Essa a imagem do parente já maduro, captada pelo olhar do menino, jovem engenheirando, que por Ouro Preto viveu durante anos; ela vem através de flashes que durante o viver e conviver foram ficando registrados nos escaninhos na memória. Uns claros e bem delineados, outros embaçados; outros ainda retocados pelas lendas, que de tanto repetidas se tornam verdadeiras. Aí vão alguns.

Primeiro, a imagem. Alto, branco ao contrario dos irmãos; como era branco aquele pescoço raramente visto, sempre envolto pelo colarinho abotoado, a gravata escura com o nó pronto e abotoada, não sei como, na camisa. Tudo coberto pelo paletó do indefectível terno azul marinho, salpicado de caspas.

Domingo. Finalmente domingo e até hoje sinto o cheiro e o gosto da magnífica macarronada do ajantarado. Nos raros dias quentes ele poderia até estar só de camisa, mas ao tomar lugar a mesa do almoço abotoava a gravata e vestia o paletó. Os sons da música clássica na vitrola do Maurílio ecoavam pela casa. – Seria uma das lendas? –

Final de férias, chegada a Ouro Preto. Inquirição completa sobre os manos e parentes de Bambuí. Ele sabia de tudo; talvez trocasse cartas com os irmãos. Telefone lá havia, mas em Bambuí não.

Quantas vezes o ouvi declamar, do poeta Guilherme de Almeida, um poema sobre o encanto de morrer segundo a ótica do sábio, do monge e outros mais, arrematando os versos com sua visão do encanto de viver. Podem consultar o poema. Ele o repetia por completo. Como os irmãos, tinha fixação pela morte aos 64 anos.

A mesa da sala coberta de papeis esparsos, trabalhos de alunos, anotações para aulas e trabalhos. Não sei, mas sempre estavam lá.

O caminho da Escola. Rigorosamente à mesma hora da manhã e da tarde subia a Rua Direita em direção a Escola de Minas, empunhando aquela pasta preta ou com livros nos braços. Passos longos e lentos, cabeça erguida. Lá ia ele, inspirando respeito e admiração de alunos e conhecidos.

Carnaval. Quarta feira de cinzas, início do vestibular. A alegria contagiante do ambiente. Abandonamos os livros e lá fomos os companheiros de pensão para a Rua São José. Eis que no meio da multidão surge aquela cabeça mais alta, conhecida. Um colega diz: - “Olha lá seu tio”. Vi e respondi: - “Meu tio não é nada, o pior é o gordo que vem manquitolando ao lado dele, meu pai.” Encontramos-nos. Abraços, risadas e meu pai proclamou: – “Não lhe disse mano? É meu filho, não seu. Hoje é noite de festa, não de estudo. Se tivéssemos cortado caminho pela Rua do Paraná até o Pilar não o encontraríamos na pensão.”

Outra vez o conselho do Salatiel. Não queria ver o sobrinho reprovado, decepcionado: - “Se é só para experimentar deixe o concurso para frente, faça um ano de anexo” - como se chamava o cursinho da Escola de Minas – “e deixe esse vestibular para o próximo ano.” Teimei e fui experimentar. Depois da primeira prova escrita me recebeu com um sorriso maroto e simplesmente disse: - “Que experimentar que nada, você está bem preparado.” Essa frase me entusiasmou e enfrentei o resto das provas com tranqüilidade. No dia da prova oral lá estava o diretor da escola a fiscalizar o andamento dos exames. Quando chamaram meu nome eu o vi sair sorrateiramente. Hoje vejo claro o motivo: evitar constrangimentos. Passei bem classificado. Comemoramos juntos com um dos poucos abraços que trocamos.

Viagens periódicas na rural da escola ao Rio de Janeiro. Sempre levando projetos e mendigando verbas da Universidade do Brasil, da qual a escola fazia parte. Era um martírio para a tia Candinha. Voltava sempre feliz, contando o tempo que faltava para se aposentar e morar em Copacabana. Um sonho apenas.

Até hoje me arrependo de o haver constrangido, seguindo uma diretiva do Diretório Acadêmico, ao adentrar sua sala com a desculpa de ser sobrinho e lhe mostrar um mal feito de professor contra o qual nossa turma estava em greve. Ele olhou aquilo, disse que devia ser engano do professor, mas que iria investigar. Não se falou mais sobre o assunto. No semestre seguinte a cadeira foi anulada para nossa turma e repetida em horas extras as quinta feiras à noite, ministradas pelo Dr. Alberto, irmão da tia Belinha.

O convívio dos ex-alunos da Escola de Minas é intenso. Em muitas reuniões solenes ou festivas, das quais participo inclusive nos almoço as quartas feiras, em quase todas capitais do Brasil e em cidades mineradoras onde residem muitos geólogos, sou recebido e conhecido como o sobrinho do Salatiel.

Meu primeiro emprego. Tímido, me apresentei ao presidente da empresa solicitando trabalho. Não fora aceito na Petrobras por não ter ainda certificado de reservista. Ele me dispensou desse documento desde que não o abandonasse assim que obtivesse o certificado e mandou-me voltar no dia seguinte; iria consultar dois professores com quem eu iria trabalhar. No dia seguinte recebeu-me muito bem; eu fora elogiado por ambos; e observou: - ”O que mais o qualifica é ser sobrinho do Salatiel, o melhor e mais sério professor que já tive. Esta informação, que não foi colocada no currículo, é a garantia de que você irá honrar o compromisso.” Lá fiquei por mais de 40 anos tornei-me amigo e sócio do patrão de quem me despedi a pouco tempo junto a uma cova.

Esse o Salatiel que conheci.