Maria Lúcia Torres
Sapatos
pretos, fechados: os passos firmes, elegantes, seguindo pelo alpendre, as duas
salas, a copa, o quarto da mamãe. Uma mulher alta, roupas claras. Feia, cabelos
curtos, muito anelados – o pixaim da Tiaracema. Inesquecível o ruído daqueles
sapatos ecoando pelo piso vermelho do corredor que dava acesso a salas de aula
no Colégio Antero Torres. Intransigente, ensinava as matemáticas; intimidava,
mas eram engraçados os apelos que lançava, quando havia aulas vagas: “Vamos
aproveitar, vamos aproveitar!” Mais matemática.
Expansiva, enunciava abertamente o que pensava. Muito amada e temida, era importante e muito brava. Indispensável, às vezes faltava às visitas quase diárias que fazia a nossa casa; acontecera o quê? O tio Rômulo não faltava. Misterioso, incansável portador dos ruídos da cidade, públicos ou reservados, trazia quase sempre as novidades culinárias que preparava – extravagantes e repulsivas ao paladar das crianças. O melhor colo do mundo; muito alto, só não dava medo porque era amplo, forte e aconchegante. O estilo permanente dos seus trajes: calças folgadas de brim caqui presas aos suspensórios, camisas claras com as mangas arregaçadas, nunca usava agasalhos; só guarda chuva e galochas de borracha. Acho que não tinha a disposição de Racema para as viagens. Instalado em sua assombrosa oficina de sapateiro, acolhia com alegria os sobrinhos atentos e maravilhados diante de tantos objetos e expedientes de trabalho pouco usuais.
Não tiveram filhos, mas tratavam os sobrinhos como se o fossem.
Eles eram diferentes, admiráveis; sua casa impecável, cada ambiente guardava um cheiro distinto: o cheiro gostoso da cozinha e da dispensa, repleta de queijos curados, temperos, doces e compotas; a louça empilhada no armário; o quintal – imenso paraíso que produzia frutas e bichos e acabava num belvedere para o poço do jacaré, tudo ferozmente guardado pela Chiquinha Benta que acabava enriquecendo o esforço da conquista. Voltávamos para dentro da casa tímidos e bem comportados; e encontrávamos o perfume do lavabo com seu sabão da Kanitz de bola cor de rosa pendurado por uma correntinha, a copa ornamentada de azulejos estampados de frutas e legumes em cores vistosas, que despertava prontamente a cobiça por um prato de compota de cajuzinho silvestre ou carambola; a sala impecável, o escritório nem por isso, o quarto perfumado.
A Tiaracema, muito elegante e sóbria no exercício de suas funções pedagógicas, chegava a ficar bonita quando preparada para as festas e as suas costumeiras viagens.
Nessas ocasiões como seriam os seus sapatos? Mas ela os calçava pretos para as jornadas campestres, os festejados piqueniques da família – gostava de cantar e era desafinada – as campanhas políticas nas periferias da cidade. Pessedista inflamada, persistente em seus argumentos e sempre muito bem informada sobre a conjuntura política nacional era uma liderança nata; naquele tempo, porém, não havia espaço político para as mulheres. Seguramente conservadora, era, como de hábito na família, muito devota; mas pouco me lembro disso, só da insígnia de uma congregação religiosa que periodicamente usava. Contudo ficou de lembrança para nós, maninha e eu, um precioso in-fólio de pequenas dimensões – Livro de Missa – presente de quinze anos que seu pai lhe ofertara, em 1915, com delicada dedicatória; aos dezoito anos – tempos do colégio – ela anotou na última página do livrinho um roteiro de suas obrigações religiosas, hoje quase apagado.
Iracema e Rômulo em sua viagem a Itália |
O
que aconteceu com a nossa Tiaracema? Nós crescemos, mas ela não envelheceu.
Fez
com o tio Rômulo uma viagem à Itália e outros lugares da Europa. Voltaram com o
Giuseppe, o sobrinho italiano; foi uma catástrofe.
Passado algum tempo fomos estudar em Belo-Horizonte e um dia a Titia chegou ao apartamento; estava doente, pedia que a acompanhássemos. Aonde? Depois ela voltou, mas para o hospital. Eu estudava, lecionava e não perdia as passeatas, mas todo dia, alguma hora do dia ou da noite ia para o hospital, ia ver minha Tiaracema. Ela faleceu no dia 20 de agosto de 1968 e veio para Bambuí.
O
Tio Rômulo sozinho, envelhecido, a vitalidade em declínio faleceu a 25 de
agosto de 1975.
Algumas datas decisivas:
1900/Bambuí:
Nasce Iracema Augusta Torres, no dia 23 de julho. Provavelmente, em 1916/17,
passou a freqüentar em Mariana o Colégio Providência,[1]
mantido desde 1849 por freiras vicentinas da congregação francesa Filhas da
Caridade de São Vicente de Paulo voltado para a formação de educadoras e
futuras agentes sociais. Concluída a sua formação docente, retornou a Bambuí,
assumiu o cargo de professora no Grupo Escolar José Alzamora e nessa
instituição de ensino realizou sua carreira. Contudo uma carreira permeada por
significativas interferências da política clientelista em vigor: as
reviravoltas políticas ocorridas no âmbito do poder de Estado que afetaram sua
família, refletiram-se diretamente no curso de seu enquadramento profissional que,
a rigor, não transcorria na esfera das carreiras políticas. No alvorecer dos
anos 1930 viram-se ela e o pai - ele cercado da esposa e filhos menores -
privados do exercício da profissão em sua cidade natal. Para assegurar a
continuidade dos respectivos trabalhos, ambos, atingidos pela maldição do
exílio político seguiram, ele para Pimhui, ela para Santo Antônio do Monte. Em
1932, mudanças políticas no governo de Minas alçaram ao poder Olegário Maciel,
companheiro de seu pai desde os tempos de formação escolar no Caraça; e
Tiaracema retornou ao exercício do magistério em Bambuí.
No final dos anos 1930 ou princípio dos anos 1940
assumiu a direção do G.E. José Alzamora, cargo que ocupou até 1947, quando
Milton Campos, eleito governador do Estado e adversário da facção política
apoiada pela família de Tiaracema, destituiu-a do cargo colocado à disposição
de uma correligionária da facção política do Governador; a nova Diretora
formada em
Administração Escolar dispunha de formação adequada para o
exercício da função. Iracema matriculou-se então no curso de Administração
Escolar do Instituto de Educação de Minas Gerais e, concluída sua formação
acadêmica, foi nomeada para a direção de um estabelecimento de ensino em Ibiá;
em 1951, com a posse de Jucelino Kubitisheck para o governo de Minas, retomou o
cargo de Diretora do G.E. José Alzamora, aposentando-se em seguida.
Millenovecento/Itália:
Crise social e econômica que atinge, sobretudo, os camponeses; 78% de
analfabetos; pobreza. A grande imigração italiana para as Américas.
Nasce em Mosciano, comune di Lucca, Itália, a 6 de setembro de 1895, Rômulo Paolinelli. Imigrou para o Brasil em millenovecentodotici, em companhia do padrino, Ludovico Paolinelli, sapateiro, dotado de bens pecuniários.[2]
Iracema
Torres e Rômulo Paolinelli casaram-se a 30 de julho de 1930.
A mesa festiva em casa de Antero Torres |
A noiva recebe a benção do pai |
A noiva confraterniza com os irmãos Lico, Pepita e Fão |
[1] Lage,
Ana Cristina Pereira: Pedagogia Vicentina: as primeiras escolas confessionais
femininas em Minas Gerais
na segunda metade do século XIX; Mariana e Diamantina. anaplage@uol.com.br www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe
5/pdf/713.pdf
[2] Pasta
Iracema Torres Paolinelli e Pasta Rômulo Paolinelli: Arquivo privado, Dalmo
Torres/ Gustavo de Castro Torres
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