segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Espaço Cultural: 6º Conto

Leda Torres de Andrade

A jovem Iracema


Havia um córrego pequeno na seca, mas que crescia desproporcionalmente nas águas, inundando suas margens e causando susto e prejuízo aos moradores ribeirinhos, que, diga-se de passagem, eram os principais comerciantes da cidade. Pois esse córrego, chamado das Almas, dividia a cidade ao meio e corria em um vale baixo onde ficava o centro com sua praça de coreto, hotel e lojas. De um lado e de outro a cidade era alta. Um lado era o Rola-Moça, o outro o Cerrado.


A casa de meu avô, o Coronel Antero, ficava numa rua comprida, na saída da cidade, do lado do Rola-Moça. Era uma chácara dentro da cidade. A casa estendia-se ancha em cima da calçada, sem gramado e sem jardim. As portas e janelas eram de pinho de Riga e abriam-se diretamente para a rua. Não havia alpendre. Ao lado do porão aberto havia uma escada inusitada e elegante, que descia em graciosa curva da parede lateral até o rés do chão, cheia de um musgo muito verde e vasos de avenca, cultivados ali por minha avó, aproveitando o lugar fresco. Para mim essa escada era um lugar encantado e eu costumava me sentar em seus degraus arredondados para sonhar que era uma princesa. Defronte, debaixo da escada que descia da cozinha, ficava o chuveiro. 


Como a maioria das casas coloniais mineiras, o fundo voltava-se para um terreno em declive e, lá em baixo, corria o córrego. Seguindo em direção ao córrego havia o pomar. A variedade de frutas era inacreditável! Do outro lado do córrego estendiam-se os pastos. Não havia mata ciliar nem arvoredos sombrosos. Os pastos eram sempre batidos, limpos e ondulados. Mesmo assim convidavam a passeios escaldantes. 


Entre os dezesseis filhos do Coronel Antero havia uma mocinha de seus treze a quatorze anos, que desde pequenina fora voluntariosa, autoritária e mandona. Perdera a mãe muito cedo e aprendera a se escudar. Não era bonita esta filha do Coronel. Mas seu porte era altivo e possuía pés e mãos de uma perfeição nobre.


Era conhecida na cidade pelo seu jeito atrevido. Costumava causar ao pai e à madrasta alguns problemas, como na última briga que tivera com um dos irmãos: jogou-lhe um prato que por pouco não acertou o alvo. O prato de louça inglesa da Companhia das Índias, usado trivialmente nas refeições, espatifou-se mais adiante.


Não obstante ela gostava também de passear pelos pastos, do outro lado do córrego, dando largas aos pensamentos e aos sonhos de donzela. - “Quem seria, pensava ela devaneando, aquele italiano loiro que me olhava timidamente naquele domingo no adro da matriz, na saída da missa?” O pai estava perto, ela não iria se arriscar. Além do mais havia o bando de irmãos...


E assim ia divagando a mocinha, espairecendo seu tédio de adolescente. Caminhava preguiçosa, sem rumo certo, percorrendo os pequenos trilhos deixados no capim pelas vacas e cavalos que pastavam por ali. 


Às vezes algum cavaleiro vindo de longe cortava caminho pelos pastos do Coronel. Entrementes, seguindo seu passeio a menina sentiu de súbito o apelo de sua natureza sadia. Vinha-lhe a necessidade premente de se esvaziar do que lhe ia dentro. E na sua confusão percebeu que não haveria tempo de correr até o pequeno paiol que havia mais adiante e muito menos, chegar a sua casa.


Olhou desconfiada para todos os lados. Ninguém se aproximava. O lugar estava ermo como sempre. Só os passarinhos e os grilos faziam barulho. Mesmo por que, não estava ela em sua propriedade? Apertando a barriga com as duas mãos, talvez tentando acalmá-la, a mocinha percebeu que teria de aliviar-se ali mesmo. Agachou-se à sombra precária de um cupim, feliz e inconseqüente.  Súbito ouviu um tropel. Varrendo a distância com o olhar assustado, viu um cavaleiro apontar no alto do morro. O coração pinoteou-lhe no peito e as entranhas se retorceram. O cavaleiro vinha em marcha picada. Não havia prazo. Mas, atrevida como era, não entrou em pânico. Habituara-se a tomar decisões. Na ousadia de sua extrema juventude, pensou consigo mesma:


- “Minha cara todo mundo conhece. Sou filha do Coronel. Mas minha bunda ninguém jamais viu...”.


E castamente, num gesto de extrema elegância e singeleza, pegando a fímbria da saia, cobriu com ela a cabeça...

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