Leda Torres de Andrade
A jovem Iracema |
Havia um córrego pequeno na seca, mas que crescia desproporcionalmente nas águas, inundando suas margens e causando susto e
prejuízo aos moradores ribeirinhos, que, diga-se de passagem, eram os
principais comerciantes da cidade. Pois esse córrego, chamado das Almas,
dividia a cidade ao meio e corria em um vale baixo onde ficava o centro com sua
praça de coreto, hotel e lojas. De um lado e de outro a cidade era alta. Um
lado era o Rola-Moça, o outro o Cerrado.
A casa de meu avô, o Coronel Antero, ficava numa rua
comprida, na saída da cidade, do lado do Rola-Moça. Era uma chácara dentro da
cidade. A casa estendia-se ancha em cima da calçada, sem gramado e sem jardim.
As portas e janelas eram de pinho de Riga e abriam-se diretamente para a rua.
Não havia alpendre. Ao lado do porão aberto havia uma escada inusitada e
elegante, que descia em graciosa curva da parede lateral até o rés do chão,
cheia de um musgo muito verde e vasos de avenca, cultivados ali por minha avó,
aproveitando o lugar fresco. Para mim essa escada era um lugar encantado e eu
costumava me sentar em seus degraus arredondados para sonhar que era uma
princesa. Defronte, debaixo da escada que descia da cozinha, ficava o chuveiro.
Como a maioria das casas coloniais mineiras, o fundo
voltava-se para um terreno em declive e, lá em baixo, corria o córrego.
Seguindo em direção ao córrego havia o pomar. A variedade de frutas era
inacreditável! Do outro lado do córrego estendiam-se os pastos. Não havia mata
ciliar nem arvoredos sombrosos. Os pastos eram sempre batidos, limpos e ondulados.
Mesmo assim convidavam a passeios escaldantes.
Entre os dezesseis filhos do Coronel Antero havia uma
mocinha de seus treze a quatorze anos, que desde pequenina fora voluntariosa,
autoritária e mandona. Perdera a mãe muito cedo e aprendera a se escudar. Não
era bonita esta filha do Coronel. Mas seu porte era altivo e possuía pés e mãos
de uma perfeição nobre.
Era conhecida na cidade pelo seu jeito atrevido.
Costumava causar ao pai e à madrasta alguns problemas, como na última briga que
tivera com um dos irmãos: jogou-lhe um prato que por pouco não acertou o alvo.
O prato de louça inglesa da Companhia das Índias, usado trivialmente nas
refeições, espatifou-se mais adiante.
Não obstante ela gostava também de passear pelos
pastos, do outro lado do córrego, dando largas aos pensamentos e aos sonhos de
donzela. - “Quem seria, pensava ela devaneando, aquele italiano loiro que me
olhava timidamente naquele domingo no adro da matriz, na saída da missa?” O pai
estava perto, ela não iria se arriscar. Além do mais havia o bando de irmãos...
E assim ia divagando a mocinha, espairecendo seu tédio
de adolescente. Caminhava preguiçosa, sem rumo certo, percorrendo os pequenos
trilhos deixados no capim pelas vacas e cavalos que pastavam por ali.
Às vezes algum cavaleiro vindo de longe cortava
caminho pelos pastos do Coronel. Entrementes, seguindo seu passeio a menina
sentiu de súbito o apelo de sua natureza sadia. Vinha-lhe a necessidade
premente de se esvaziar do que lhe ia dentro. E na sua confusão percebeu que
não haveria tempo de correr até o pequeno paiol que havia mais adiante e muito
menos, chegar a sua casa.
Olhou desconfiada para todos os lados. Ninguém se
aproximava. O lugar estava ermo como sempre. Só os passarinhos e os grilos
faziam barulho. Mesmo por que, não estava ela em sua propriedade? Apertando a
barriga com as duas mãos, talvez tentando acalmá-la, a mocinha percebeu que
teria de aliviar-se ali mesmo. Agachou-se à sombra precária de um cupim, feliz
e inconseqüente. Súbito ouviu um tropel.
Varrendo a distância com o olhar assustado, viu um cavaleiro apontar no alto do
morro. O coração pinoteou-lhe no peito e as entranhas se retorceram. O
cavaleiro vinha em marcha picada. Não havia prazo. Mas, atrevida como era, não
entrou em pânico.
Habituara-se a tomar decisões. Na ousadia de sua extrema
juventude, pensou consigo mesma:
- “Minha cara todo mundo conhece. Sou filha do
Coronel. Mas minha bunda ninguém jamais viu...”.
E castamente, num gesto de extrema elegância e
singeleza, pegando a fímbria da saia, cobriu com ela a cabeça...